Numa longa carta encaminhada aos procuradores do Ministério Público Federal, cujo título é “União e Serenidade”, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot,
afirma que o desafio da hora é o de “combater a impunidade”. Diz,
ainda, que o MP não tem ideologia nem partido e que o único guia deve
ser o texto da Constituição da República e as leis. Defende, ainda, que o
MP deve manter o sentimento de unidade, “sem cizânias personalistas ou
arroubos de idiossincrasias individuais”. Janot também condena a
radicalização: “Essa estrada só tem curso para nos levar ao ódio e à
desintegração do sentimento de unidade essencial que deve permear o
nosso povo, para além das divergências políticas”.
O Ministério Público, assim como a Justiça Federal e a Polícia Federal,
tem sido criticado pelo trabalho na Lava Jato. Janot, em especial, foi
alvo de comentários do ex-presidente Lula num diálogo com o advogado
Luiz Carlos Sigmaringa. Na conversa, Lula diz: “essa é a gratidão dele
(Janot) por ele ser procurador”. Lula comentou que Janot recusou
investigações contra o senador tucano Aécio Neves.
Leia a carta de Janot na íntegra:
União e Serenida
“Encontramo-nos atualmente empenhados numa grande guerra civil, pondo à prova se essa Nação, ou qualquer outra Nação assim concebida e consagrada, poderá perdurar”. Essas foram palavras proferidas por Abraham Lincoln, em 19 de novembro de 1863, por ocasião de um conflito que dividia dramaticamente o povo dos Estados Unidos da América. O pano de fundo da dissensão era a luta pela liberdade consubstanciada no fim da escravidão. Lincoln, como um grande estadista, sabia que, por mais justa que fosse a sua causa, vencer a guerra a qualquer custo não seria uma alternativa válida. O país, após o sangrento conflito, deveria sobreviver ou não haveria verdadeira vitória. Em respeito à memória dos mortos, que ele homenageava no cemitério de Gettysburg, o presidente percebeu com muita clarividência que a própria noção de liberdade, como valor para as nações democráticas, sairia enfraquecida ou mesmo pereceria, caso o desfecho do conflito fosse a fratura irreconciliável entre os irmãos americanos. Abraham Lincoln queria, acima de tudo, um país unido e forte, em que o governo do povo, para o povo e pelo povo jamais desaparecesse da face da terra.
“Encontramo-nos atualmente empenhados numa grande guerra civil, pondo à prova se essa Nação, ou qualquer outra Nação assim concebida e consagrada, poderá perdurar”. Essas foram palavras proferidas por Abraham Lincoln, em 19 de novembro de 1863, por ocasião de um conflito que dividia dramaticamente o povo dos Estados Unidos da América. O pano de fundo da dissensão era a luta pela liberdade consubstanciada no fim da escravidão. Lincoln, como um grande estadista, sabia que, por mais justa que fosse a sua causa, vencer a guerra a qualquer custo não seria uma alternativa válida. O país, após o sangrento conflito, deveria sobreviver ou não haveria verdadeira vitória. Em respeito à memória dos mortos, que ele homenageava no cemitério de Gettysburg, o presidente percebeu com muita clarividência que a própria noção de liberdade, como valor para as nações democráticas, sairia enfraquecida ou mesmo pereceria, caso o desfecho do conflito fosse a fratura irreconciliável entre os irmãos americanos. Abraham Lincoln queria, acima de tudo, um país unido e forte, em que o governo do povo, para o povo e pelo povo jamais desaparecesse da face da terra.
Com o grande líder Nelson Mandela também não foi diferente. Após 30
anos de cárcere decorrente de sua luta pelo fim do apartheid, Madiba,
como era carinhosamente conhecido, derrotou a nódoa da segregação racial
e chegou à presidência da África do Sul. Muitos dos companheiros que
compartilharam da sua luta acreditavam que, com a sua assunção ao poder,
era a hora da revanche contra os que, por tantos anos, injustamente os
oprimiram. Mas Mandela foi um gigante em humanidade e sabedoria. Ao
contrário do que se poderia esperar de um homem tão brutalmente
injustiçado, ele decidiu seguir por um caminho que não levasse o seu
país a se desintegrar em uma guerra fratricida e de consequências
imprevisíveis. Sem aquiescer com o mal, esse extraordinário estadista,
encontrou uma forma sábia de desfazer os equívocos do passado,
preservando a unidade de sua nação.
Cito esses dois exemplos extremos para falar do Brasil, do
Ministério Público e do momento atual. Refletindo sobre tudo isso, chego
à conclusão de que há muitos anos o país não atravessa uma crise tão
aguda e grave como a que vivemos nestes dias difíceis.
É certo que cada época tem os seus desafios, que os problemas, as
soluções e os riscos são próprios e datados, mas não é menos certo que
há valores e atitudes que influenciam decisivamente a ordem dos
acontecimentos e que não estão jungidos ao tempo nem ao espaço.
Refiro-me à temperança, à coragem, à sabedoria e à humildade. Não
sairemos dessa crise melhores como país se escolhermos o caminho da
radicalização. Essa estrada só tem curso para nos levar ao ódio e à
desintegração do sentimento de unidade essencial que deve permear o
nosso povo, para além das divergências políticas.
Nesses momentos singulares, as paixões afloram, a psicologia das
massas dita condutas e, no ponto de inflexão, tudo pode mudar para
melhor ou para pior. Podemos com a crise avançar ou retroceder, ficar
estáticos jamais. Então, o que será determinante nessa hora difícil para
que a nossa história siga por um ou por outro lado? Muitos fatores,
certamente. Mas dentre todos eles, gostaria de destacar dois: a
qualidade de nossos líderes e a força de nossas instituições. Dito de
forma melhor: avançaremos na medida em que as lideranças operem, com
firmeza e serenidade, nos limites estritos da institucionalidade. Nenhum
de nós, por mais lúcido e clarividente que seja, é capaz de sozinho e
ao largo do processo institucional apontar saídas que nos conduzam a um
futuro melhor.
O Brasil superará essa crise, não há dúvida sobre isso. Esse fato
sequer depende do Ministério Público, da Justiça ou dos partidos, ao
contrário, vai ocorrer, se for necessário, apesar de todos nós, pela
força da própria sociedade. Temos, no entanto, uma escolha:
institucionalizaremos os valores republicanos, democráticos e do estado
de direito, ou afundaremos o país em um perigoso jogo de poder que nada
há de agregar à construção da cidadania e da civilidade?
Para responder a essa pergunta, é preciso entender que, sob
qualquer governo, de esquerda, de direita ou de centro, o futuro só será
generoso conosco se aceitarmos definitivamente que não existe salvação
possível fora das instituições.
O Ministério Público forjou suas potencialidades em anos de
trabalho incessante de combate à corrupção, o qual é desenvolvido por
seus membros nos mais recônditos lugares do país. Se chegamos, agora, ao
ponto culminante do enfrentamento desse mal que assola nossos governos,
atingindo o sistema nervoso central da corrupção, isso não se deve a
iniciativas individuais, ao messianismo ou ao voluntarismo, mas ao
conjunto de experiências e conhecimentos acumulados coletivamente ao
longo de anos de labuta, de erros e de acertos. O país precisa, mais do
que nunca, de que o Ministério Público cumpra fielmente o seu destino
nesse momento crucial, e, para tanto, precisamos de coletivamente
compreender três verdades intuitivas: a primeira, o desafio da nossa
hora é o de combater a impunidade; a segunda, o Ministério Público não
tem ideologia nem partido, de modo que nosso único guia deve
encontrar-se no texto da Constituição da República e nas leis; a
terceira, devemos manter aceso nosso sentimento de unidade, sem cizânias
personalistas ou arroubos das idiossincrasias individuais. É chegada a
hora de exercermos, por inteiro, as nossas funções institucionais,
influenciando a sociedade pelo bom exemplo e pelo trabalho técnico e
sereno. Não podemos permitir que as paixões das ruas encontrem guarida
entre as nossas hostes. Somos Ministério Público. A sociedade
favoreceu-nos, na Constituição, com as prerrogativas necessárias para
nos mantermos alheios aos interesses da política partidária e até para a
defendermos de seus desatinos em certas ocasiões. Se não compreendermos
isso, estaremos não só insuflando os sentimentos desordenados que
fermentam as paixões do povo, como também traindo a nossa missão e a
nossa própria essência.
Conclamo todos os membros do Ministério Público ao cumprimento dos
seus deveres para com país. Devemos dar combate incessante à corrupção,
seja onde for e doa a quem doer, mas há de se preservar sempre as
instituições. A Lava Jato certamente não salvará o Brasil, até porque se
tivéssemos essa pretensão, já teríamos falhado antes mesmo de começar.
No entanto, esse belo trabalho – estou convicto disso – tem as condições
necessárias para alavancar nossa democracia para um novo e mais elevado
patamar, se, e somente se, soubermos manter a união, a lealdade
institucional, o respeito à Constituição. Devemos apagar o brilho
personalista da vaidade para fazer brilhar o valor do coletivo,
densificando a institucionalidade dentro da nossa casa e,
consequentemente, no País.
Para encerrar, socorro-me uma vez mais de outro insigne estadista –
Winston Churchill – que guiou seu país em uma terrível guerra pela
sobrevivência e pela liberdade. Parafraseando-o, desejo que, unidos no
cumprimento do próprio dever, tenhamos, nas nossas mentes e nos nossos
corações, a ideia firme de que se o Ministério Público brasileiro durar
mil anos, possam os homens dizer de nós: “Este foi o seu melhor
momento”.
Fonte: globo.com
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