A trajetória de Lula o levou da posição de “sindicalista combativo”, por meio da qual se projetou no país, a lobista das grandes empreiteiras. Um fim melancólico para quem, no passado, representou uma esperança de grande parte do povo brasileiro
Luiz
Inácio Lula da Silva vai chegando ao fim do caminho. Mesmo ele é capaz
de perceber que está acabando o terreno à sua frente. Antes do petista,
tivemos casos semelhantes desses meteoros da política que vêm não se
sabe de onde, passam por grandes êxitos, alcançam rapidamente o topo e
depois caem miseravelmente. Já nos esquecemos de Jânio Quadros? Lula é
diferente de Jânio em um ponto: veio de mais baixo na escala social e
conseguiu uma influência mais organizada e duradoura na política do
país. Dilma Rousseff, embora pareça um meteoro, não é propriamente um
caso político. O fato de ela ter chegado à Presidência da República foi
apenas um enorme erro de Lula cometido em um dos seus acessos de
personalismo. Erro, aliás, que o empurra com mais rapidez para o fim. "O
cara", de que falou Barack Obama quando Lula tinha 85% de aprovação,
não é mais aquele...
Há algum tempo, muitos gostavam de ver em Lula um "filho do Brasil".
Era o seu primeiro mandato, quando se pensava que surgia no país uma
"nova classe média". Com a crise dos dias atuais, essa "nova classe"
provavelmente desapareceu. Outra das veleidades grandiosas do petista,
já no fim do seu governo, foi um suposto plano para terminar com a fome
no mundo. Também naqueles tempos, alguns imaginavam que o Brasil
avançava para uma posição internacional de grande prestígio.
Muitos desses sonhos deram em nada, mas, para o bem e para o mal,
Lula foi um filho do Brasil. Aliás, também o foram os milhares, milhões
de jovens fruto do "milagre econômico" dos anos Médici, assim como,
antes deles, os filhos da democracia e do crescimento dos anos JK, ou,
se quiserem, algumas décadas mais atrás, da expansão aluvional das
cidades que assinala o nosso desenvolvimento social desde os anos 1930.
No Brasil, temos a obsessão permanente do progresso, assim como uma
certa vacilação, também permanente em nosso imaginário, entre a ditadura
e a democracia. Lula foi uma variante desse estilo brasileiro de vida.
Queria resolver as coisas, sempre que possível, com "jeitinho", ao mesmo
tempo que sonhava com as benesses do "Primeiro Mundo" e da modernidade.
Na política brasileira, porque vinha de baixo, o petista tinha traços
peculiares que se revelam em sua busca de reconhecimento como
indivíduo. Nesse aspecto está o seu compromisso com a democracia, aliás
muito aplaudido no início de sua vida como político. O sindicato foi seu
primeiro degrau e, mais adiante, uma das raízes de seus problemas. É
que, a partir desse ponto, Lula passou a buscar seu lugar como cidadão
numa instituição aninhada nos amplos regaços do Estado. Ele começou em
uma estrutura às vezes repressiva e muitas vezes permissiva, que
dependia, sobretudo, como continua dependendo, dos recursos criados pelo
Estado por meio do "imposto sindical". A permissividade maior vinha do
fato de que tais recursos não passavam, e ainda não passam, pelo
controle dos tribunais de contas.
O maior talento pessoal de Lula foi sair do anonimato,
diferenciando-se dos parceiros de sua geração. No sindicalismo, falou
sempre contra o "imposto". E talvez por isso mesmo tenha logrado tanto
prestígio como sindicalista combativo e independente que não precisou
fazer nada de concreto a respeito. Na época das lutas pelas eleições
diretas e pelo fim do autoritarismo reinante sob o Ato Institucional nº
5, dizia que "o AI-5 dos trabalhadores é a Consolidação das Leis do
Trabalho - CLT". Mas em seu governo não só manteve o imposto e as leis
sindicais corporativistas como foi além, generalizando para a CUT e
demais centrais sindicais os benefícios do imposto.
O que tem sido chamado, em certos meios, de "carisma" de Lula foi sua
habilidade de sentir o seu público. Chamar essa "empatia", uma
qualidade que qualquer político tem, em grau maior ou menor - e que,
aliás, sempre faltou a Dilma -, de "carisma" é uma impropriedade
terminológica. Em sociologia, o fenômeno do "carisma" pertence ao
universo das grandes religiões, raríssimo no mundo político, e, quando
ocorre, é sempre muito desastroso. Os fascistas de Mussolini diziam que
"il Duce non può errare" ("o Duce não pode errar"), para exaltar uma
suposta sabedoria intrínseca ao ditador. Não era muito diferente das
fórmulas típicas do "culto da personalidade" de raiz stalinista. Embora
tais fórmulas estejam superadas na esquerda há tempos, os mais ingênuos
entre os militantes do PT ainda se deixam levar por coisas parecidas.
Consta que, no mundo de desilusões e confusões do "mensalão", um
intelectual petista teria dito: "Quando Lula fala, tudo se esclarece".
Não ajudou muito...
Luiz Inácio Lula da Silva foi uma das expressões da complexa
integração das massas populares à democracia moderna no Brasil. É da
natureza da democracia moderna que incorpore, integre a classe
trabalhadora. No Brasil, como em muitos países, isso sempre se fez por
meio de caminhos acidentados, entre os quais o corporativismo criado em
1943, no fim da ditadura getuliana, e mantido pela democracia de 1946,
como por todos os interregnos democráticos que tivemos desde então. O
corporativismo se estende também às camadas empresariais, assim como a
diversos órgãos de atividade administrativa do Estado brasileiro.
Favoreceu a promiscuidade entre interesses privados e interesses
públicos e certa medida de corrupção que, de origem muito antiga, mudou
de escala nos tempos mais recentes com o crescimento industrial e a
internacionalização da economia brasileira. Nessa mudança dos tempos,
Lula passou de "sindicalista combativo" a lobista das grandes
empreiteiras. Um fim melancólico para quem foi no passado uma esperança
de grande parte do povo brasileiro.
* Professor emérito do Departamento de Ciência Política da
Universidade de São Paulo e ex-ministro da Cultura (de 1995 a 2002, no
governo Fernando Henrique Cardoso). Foi um dos fundadores do Partido dos
Trabalhadores (PT)
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