Um pai ou uma mãe devem bisbilhotar emails e caixas de
mensagens dos filhos menores nas redes sociais para acautelarem a sua
segurança? A solução está na infância. E na confiança, respondem os
especialistas.
Um pai ou uma
mãe têm o direito de invadir a intimidade dos filhos para garantirem que
estes não se expõem a riscos desnecessários na Internet? Devem, porque
lhes compete zelar pela segurança dos filhos, aceder a passwords
para vasculharem o que andam a fazer e com quem falam os menores no
Facebook, WhatsApp, Instagram ou Snapchat? A questão extravasa cada vez
mais as fronteiras domésticas e familiares para invadir os consultórios
dos psiquiatras, chegando nos casos mais graves até à Polícia Judiciária
(PJ), onde são crescentes os pedidos de ajuda de pais cujos filhos
foram vítimas de abusos, chantagem ou extorsão na Internet.
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“Quando
trabalhei na divisão de Sintra da PSP, recordo-me de vários casos de
menores assediados via Internet. E os casos chegaram-nos porque houve
mães que acederam ao espaço das mensagens privadas das filhas nas redes
sociais e descobriram lá mensagens de teor sexual”, relata Hugo Palma,
actualmente director do gabinete de comunicação da PSP e responsável
pela gestão das páginas oficiais da polícia nas redes sociais.
Uma
fonte da PJ confirma que “há um número crescente de queixas e, em dois
terços dos casos, são os pais que denunciam a situação, já no limite,
depois de os seus filhos terem sido vitimizados”. E aqui é escusado,
como alerta Rute Agulhas, psicóloga clínica e forense e perita no
Instituto Nacional de Medicina Legal, os pais agarrarem-se a uma “visão
cor-de-rosa das coisas” e considerarem que episódios destes só acontecem
aos outros.
“Não há muito tempo, chegou-me o caso de uma miúda depois de uma
tentativa de suicídio grave porque alguém tinha publicado uma
fotomontagem em que ela aparecia com o corpo de uma vaca, fazendo a
metáfora com a miúda que vai com todos. Ela andava no 7.º ano de
escolaridade e isso tornou-se viral. E lembro-me de outro caso, de uma
miúda com 13 ou 14 anos — carente e que ficava muito tempo sozinha em
casa —, que acabou por se encontrar presencialmente com alguém que se
apresentou na Internet como tendo 17 anos e com quem estabeleceu uma
relação virtual. O indivíduo, afinal, tinha 35 anos, mas quando ela o
viu e sentiu esse choque já estava criada uma relação afectiva e de
confiança e ele lá lhe explicou que tinha mentido por sentir medo de ser
rejeitado. Acabou por coagi-la a ter relações sexuais”, relata Rute
Agulhas, que é também professora no ISCTE – Instituto Universitário de
Lisboa e autora de um jogo para prevenir abusos sexuais em crianças
onde decidiu incluir a problemática da Internet depois de ter percebido
que “há crianças com seis e sete anos de idade com acesso à Internet”.
Espaço cinzento
Numa
altura em que os miúdos se inscrevem nas redes sociais com oito e nove
anos de idade, até onde deve chegar a vigilância dos pais? E aos 15 ou
16 anos? Justifica-se que os progenitores sacrifiquem o direito de
reserva da vida privada dos filhos para lhes garantir segurança? “Há um
espaço cinzento muito complicado e difícil de definir”, hesita Hugo
Palma. Para o intendente da PSP, “as mensagens privadas são, em
princípio, espaços onde os pais não devem entrar, mas aí coloca-se a
questão ética de saber se os pais não têm o dever de fazer esse controlo para salvaguarda da protecção da criança”.
Sem
respostas prontas, a investigadora na área do Direito da Informação,
Maria Eduarda Gonçalves, posiciona a questão do ponto de vista jurídico:
“Aqui joga-se o dever legal e o direito da família a proteger os filhos
que ainda não atingiram a maioridade legal face aos riscos
potencialmente gravosos que as redes sociais comportam. A questão
coloca-se quando esse dever entra em tensão com o direito
constitucionalmente garantido de protecção de reserva da vida privada,
que todos têm, nomeadamente as crianças. Portanto, trata-se de saber a
que ponto se justifica que, face a determinados riscos, os pais
interfiram nessa liberdade e autonomia individuais dos filhos,
consultando-lhes o email, os espaços de mensagens”, cogita a
jurista. E o mais próximo que chega de uma conclusão é isto: “Diria que
nenhum direito é absoluto. Em abstracto, não se pode ir muito mais longe
do que admitir que há limites a esse direito e que os pais não podem
descurar essa questão, desresponsabilizando-se e deixando as crianças
menores sozinhas no exercício desse direito à privacidade.”
Na cabeça — e no consultório — de Daniel Sampaio, psiquiatra e
terapeuta com mais de 30 anos de experiência com adolescentes e
famílias, a equação coloca-se a outros níveis. “Sou contra o
conhecimento de passwords e contra a invasão de privacidade por
parte dos pais”, introduz. E sustenta: “Não é através de uma vigilância
do tipo policial que se resolvem os problemas entre pais e filhos e a
quebra da confiança na relação entre uns e outros é um ingrediente
decisivo para o conflito.” Porque “o clima entre pais e filhos tem de
ser de confiança e partilha e a vigilância policial degrada as relações e
leva ao conflito”, o psiquiatra mostra-se também avesso ao recurso às
aplicações que permitem vigiar a actividade dos filhos na Internet sem o
seu consentimento, a não ser “como medida extrema”. Não se trata de
ignorar os riscos. “Em primeiro lugar, é importante que os pais utilizem
bem as redes sociais eles próprios e que falem disso com os filhos. Se
uma criança perceber o que está certo e errado terá menos possibilidades
de errar”, preconiza.
Em casa, não na escola
Imagine-se
então uma criança de dez anos que insista em criar uma conta no
Facebook. “Os pais devem acompanhar a inscrição e a publicação dos
primeiros conteúdos e têm que ter uma dimensão ética, explicando-lhe o
que deve e o que não deve fazer. Têm que lhe explicar que não deve
comentar as imagens dos outros, que não deve fazer comentários sobre os
corpos dos amigos, que pode comunicar e trocar determinadas imagens dos sites
que encontra mas que não deve publicar imagens de pessoas”, aconselha
Daniel Sampaio. O psiquiatra insiste que a chave está na confiança e que
esta se ganha na infância. “É aí que se estabelece a possibilidade de
um filho que tem um problema desabafar com os pais. Feito isso, será
mais fácil que, perante uma situação de maior risco, os filhos recorram
aos pais e desabafem com eles.”
E não, não compete às escolas fazer esse trabalho de sensibilização.
“Os miúdos na escola aprendem os riscos associados às redes sociais no
8.º ano, em que já têm mais de 13 anos e podem legalmente aceder às
redes sociais. Mas basta ir a um auditório de uma escola do 1.º ciclo
para perceber que 80% dos miúdos com oito ou nove anos já têm contas nas
redes sociais”, relata Tito de Morais, fundador do MiudosSegurosNa.Net,
um projecto dedicado a promover a utilização segura das novas
tecnologias por crianças e jovens.
“A situação em que os pais se
encontram perante um filho de oito ou dez anos que queira abrir uma
conta numa rede social não é fácil e coloca-lhes um dilema: ou respeitam
as regras e recusam abrir a conta porque isso implica mentir — no
Facebook, por exemplo, a idade mínima são os 13 anos —, e aí correm o
risco de o miúdo abrir a conta sozinho, ou aceitam abrir a conta mas
ficam com a password e o username para poderem fazer algum acompanhamento.”
Claro
que o que é válido para um miúdo de dez anos dificilmente o é para um
de 16. “Aqui, o controlo parental, mesmo que pareça consentido, pode
funcionar ao contrário, ou seja, os miúdos vão esconder a verdadeira
conta que usam e os pais ficam com acesso a uma conta fictícia onde não
publicam nada, porque a tendência nesta idade será para ver a supervisão
dos pais como uma intrusão e uma bisbilhotice”, aponta Tito de Morais.
E voltamos aqui à questão da confiança. “Os pais não podem deixar os
filhos com rédea solta na Internet mas têm que ter noção que, se eles
quiserem esconder a sua actividade na Internet, não lhes faltam formas
de o fazer. Por isso é que é tão importante que os pais consigam criar
uma relação de confiança com os filhos e mantenham as linhas de
comunicação abertas para que estes se sintam à-vontade para pedir ajuda
no dia em que fizerem uma asneira ou forem vítimas de uma situação na
Internet”, sugere, dizendo-se seguro de que esse dia chegará, mais cedo
ou mais tarde: “Não há anjinhos, todos fazemos asneiras. A diferença é
que hoje essas asneiras tendem a chegar ao conhecimento de todos e a
ficar registadas para a posteridade.”
Quebrar tabus
Ao
longo das suas inúmeras incursões pelas escolas, Tito de Morais ouviu
muitas histórias. “Cada vez mais os jovens usam estas tecnologias como
forma de expressar a sua sexualidade e partilham fotos e vídeos com as
pessoas com quem mantêm relações amorosas. Mas as relações tendem a ser
menos duradouras que as fotografias e os vídeos. E aquilo que foi
partilhado com a intenção de ser visto pelo namorado ou pela namorada
acaba muitas vezes disseminado pela Internet.”
Cabe aqui aos pais
explicar o risco de registar a intimidade em formato digital. E, no
equilíbrio necessário entre o dever de supervisão e o respeito pela
privacidade dos filhos, quando estes se mostrem menos receptivos à
ingerência parental, Tito de Morais aponta como exemplo o amigo que
estabeleceu um pacto com os filhos: “Ele não sabe a password
dos filhos mas combinaram mantê-la num envelope fechado que o pai pode
abrir caso suspeite de alguma coisa. Mas também conheço pais que não
hesitam em sacrificar a privacidade dos filhos e outros que recusam
assumir o papel de polícias na vida deles. Tudo depende da postura e dos
valores.”
Claro que, como lembra Rute Agulhas, “aos 15 anos ninguém quer os
pais a invadir-lhes a privacidade, a entrar no quarto sem bater ou a
inspeccionar as mochilas”. Mas, se esse dever de supervisão e os
cuidados que é preciso ter forem devidamente explicados desde a
infância, já será mais fácil na adolescência equilibrar o controlo
parental com o respeito pela privacidade. “Se este trabalho começar na
infância — e tenderia a defender que, mais do que bisbilhotar sem os
filhos saberem, os pais devem exigir ter conhecimento das passwords até aos 14 ou 15 anos, porque a supervisão faz parte das suas responsabilidades parentais —, o resto surge naturalmente.”
Tudo
depende da capacidade — “que muitos pais não têm”, como lembra Rute
Agulhas — de quebrar os tabus e começar a falar de sexualidade com os
filhos. “Muitos pais ou cuidadores dizem-nos que até querem falar mas
que não conseguem arranjar um canal de comunicação. Mas têm mesmo de o
fazer. De serem capazes de explicar que uma câmara num computador, mesmo
desligada, pode ser accionada remotamente e que o melhor é tapá-la com
fita-cola. E têm de ser capazes de o fazer sem provocar alarmismos, com a
mesma naturalidade com que alertam os miúdos para os cuidados que estes
têm de ter quando atravessam a rua numa passadeira.”
O que é proibido, isso sim, é continuar a confiar na aparente segurança que lhes confere o facto de a criança ou o jovem estarem em casa, sentados no sofá, entretidos com o tablet,
o telemóvel ou o computador. E “infelizmente”, conclui Rute Agulhas,
“muitos pais continuam a preferir ignorar que os perigos a que os filhos
estão expostos na Internet, mesmo as crianças de seis anos que acebem
ao YouTube, são muito maiores do que se estivessem na rua a brincar em
frente ao prédio”.
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