Matt Mc Garr/Alamy Stock Photo/BBC
Condição que afeta apenas 32 pessoas no mundo impede que Rachel saia de casa em dias de chuva
Rachel acorda. E bebe um tipo de veneno que lhe dá a sensação de estar
sorvendo um suco de urtigas. À medida que o líquido desce pela garganta,
ela sente a pele queimar, bem como a formação de uma trilha de marcas
vermelhas. Horas mais tarde, gotas abrasadoras caem do céu e, em um
clube local, ela assiste pessoas se banhando em piscinas da substância
irritante. Para eles, não é problema algum, mas se Rachel ousar tocar a
substância, sofrerá a dor da queimadura.
Não se trata de nenhuma
bizarra realidade alternativa. Este é o mundo da britânica Rachel
Warwick, que é alérgica a água. É um mundo em que banhos de banheira são
situações de pesadelo e que um mergulho no mar é uma ideia tão pouco
atraente quanto deslizar por um tobogã de gilete. "Essas coisas são
minha ideia de como deve ser o inferno", diz a mulher.
Qualquer
contato com a água, incluindo seu suor, deixa Rachel com irritações
doloridas, inchaços e coceiras que podem durar horas. "É como se eu
tivesse corrido uma maratona. Fico cansada e tenho que me sentar para
recuperar a energia. É horrível, mas seu eu chorar as coisas só pioram:
minha cara incha", explica.
A condição é conhecida como
urticária aquagênica. Está certamente longe de ser prazerosa, mas você
deve estar mais interessado em saber como Rachel consegue sobreviver.
Afinal, todos os dias algo nos lembra de que a água é a necessidade mais
básica da vida - tanto que a Agência Espacial Americana (NASA) baseia
sua busca por vida extraterrestre na existência de água. Pelo menos 60%
do corpo humano é composto de água. Um adulto de 70kg contém 40 litros
do líquido.
Mas a água em nosso corpo não parece ser um problema
para quem sofre da urticária aquagênica. As reações alérgicas são
detonadas pelo contato com a pele e ocorrem a despeito de temperatura,
pureza ou salinidade. Mesmo a água destilada várias vezes vai causar
problemas.
"Quando as pessoas sabem da minha condição, elas
fazem perguntas do tipo 'como você faz para comer ou beber' ou 'como
toma banho'. A grande verdade é que você precisa aguentar a dor e seguir
a vida", diz Rachel.
A doença confunde os cientistas tanto como
nós. Tecnicamente, a urticária aquagênica não é uma alergia, pois é uma
provável reação imunológica despertada pelo corpo em vez de uma reação a
agentes externos, como pólen ou amendoins.
Uma das primeiras
teorias para explicar como a doença funciona é que a água interage com a
camada mais externa da pele, composta majoritariamente de células
mortas e substância oleosa que mantém a pele úmida. Contato com a água
pode fazer com que esses componentes liberem compostos tóxicos, levando a
uma reação imunológica. Especialistas também sugerem que a água
simplesmente pode dissolver elementos químicos na camada de pele morta,
fazendo com que eles penetrem em camadas mais profundas, onde causam a
reação imunológica.
A teoria mais ousada é que a condição é
deflagrada por diferenças de pressão que acionam por osmose o alarme
imunológico quando a água deixa a pele.
Quaisquer que sejam as
causas, porém, a urticária é uma doença devastadora e que pode
transformar vidas, como explica o dermatologista Marcus Maurer, fundador
da ECARF, um centro alemão de estudos de alergias. "Tenho pacientes que
sofrem de urticária há 40 anos e que ainda acordam com manchas e edemas
diariamente", explica.
Pessoas que sofrem deste mal pode
desenvolver ansiedade ou depressão, preocupando-se constantemente com o
próximo ataque. "Em termos de qualidade de vida, é um das piores doenças
de pele que se pode ter", acrescenta Maurer.
Rachel tinha 12
anos quando foi diagnosticada, depois de perceber uma irritação na pele
quando nadava. Ela não foi enviada para testes. O método padrão de
diagnóstico é manter a parte superior do corpo molhada por meia hora e
ver o que acontece. "Meu médico conhecia a condição e me disse que o
teste seria pior".
Sobreviver com a urticária não é um problema,
mas suportá-la diariamente é outra história. Em períodos de muita
chuva, por exemplo, Rachel não pode sair de casa. Atividades
corriqueiras como lavar a louça precisam ser executadas pelo marido. Ela
limita os banhos a apenas um por semana. Para minimizar o suor, ela usa
roupas leves e evita exercícios.
Assim como outras pessoas com a
condição, Rachel bebe muito leite, já que a reação não é tão ruim
quanto com a água. E ninguém sabe o porquê. O tratamento até agora é
feito basicamente através do uso de anti-histamínicos, e para entender a
razão da pouca evolução da busca por uma cura, é preciso primeiro
entender o que acontece durante uma reação.
Tudo começa quando
células imunológicas na pele, conhecidas como mastócitos, liberam
proteínas inflamatórias (histaminas). Em uma reação imunológica normal,
as histaminas são extremamente úteis, fazendo com que os vasos
sanguíneos se abram o suficiente para a entrada de glóbulos brancos, que
atacam invasores. Mas durante uma reação à água, tudo o que você recebe
são os efeitos colaterais: os fluidos causam inchaços na pele. Ao mesmo
tempo, as histaminas ativam neurônios cuja principal função é fazer com
que tenhamos coceiras. Isso provoca as lesões conhecidas como vergões.
Na teoria, os anti-histamínicos deveriam funcionar todas as vezes, mas
na prática as drogas tiveram resultados mistos. Em 2014, Rachel foi
enviada para o ECARF, em Berlim, como parte de um documentário. Médicos
sugeriram que ela tomasse uma dose maior do remédio. Ela fez isso e, a
pedido dos médicos, nadou em uma piscina. Não funcionou. "Fiquei me
coçando loucamente e parecia que tinha uma doença horrível de pele",
lembra Rachel.
Mas, desde 2008, o ECARF vinha estudando uma
alternativa aos anti-histamínicos, concentrando-se nos mastócitos - mais
precisamente no que poderia acionar a produção de histaminas. Estudos
em laboratórios apontaram para um culpado - o anticorpo IgE, responsável
por alergias "verdadeiras", como a pólen ou pelos de animais. "Em vez
de reagir a algo do mundo exterior, essas pessoas (os portadores de
urticária aquagênica) estão produzindo IgE em resposta a algo
acontecendo no interior de seus corpos", diz Maurer.
Tudo do que
precisavam era de uma droga que pudesse bloquear os efeitos do IgE. E
já havia uma no mercado. O Omalizumab foi originalmente desenvolvido
como tratamento para asma. "O laboratório que produzia a droga não
acreditou quando pedimos para usá-la", lembra o dermatologista. Em
agosto de 2009, os médicos testaram o Omalizumab em uma mulher de 48
anos com outra forma rara de urticaria, acionada por pressão. Por três
anos, a paciente desenvolvia irritações na pele com o mínimo toque. Era
ruim ao ponto das irritações aparecerem até quando se vestia ou
penteava.
Mas após apenas uma semana de tratamento, os sintomas
diminuíram sensivelmente. No final de um mês, desapareceram. Desde
então, os cientistas descobriram que o Omalizumab é eficaz contra mesmo
as formas mais obscuras de urticária. "Essa droga mudou o jogo
completamente", diz Maurer.
Um de seus primeiros pacientes foi
um professor que reagia ao próprio suor. Não podia mais dar aulas porque
seu rosto inchava durante as aulas. Mas apenas uma semana de tratamento
mudou sua vida.
Isso deveria ter representado um final feliz
para Rachel. Mas há um porém: a droga ainda não passou por testes
clínicos extensivos que comprovem sua eficácia e, por isso, sistemas de
saúde pública como o NHS britânico não custeiam seu uso. Esse foi o
problema que Rachel encontrou em 2014 quando teve o Omalizumab
receitado. Sem cobertura do NHS, a droga custaria milhares de euros por
mês.
Como a urticária aquagênica afeta apenas uma em cada 230
milhões de pessoas no mundo, isso significa que apenas 32 pessoas no
planeta sofrem da doença. Um número insuficiente para grandes testes
clínicos. E a droga está chegando ao fim de sua patente, o que faz com
que a Novartis, a empresa que fabrica droga, não pense investir
pesadamente em testes ou mesmo no desenvolvimento de novos tratamentos. A
barreira final para cuidar da urticária aquagênica não é científica,
mas sim econômica.
Pelo menos por enquanto, Rachel vai ter que esperar para realizar o sonho de poder fazer natação. Ou dançar debaixo da chuva.
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