Pelo menos é o que pretende o Partido Socialista Brasileiro (PSB),
que ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade – assinada pela banca
Carneiros Advogados – em que se questiona a adequação constitucional do
artigo 34, IV, da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e do artigo
25, XXX,“d”, da ANVISA, que dispõem sobre a inaptidão temporária para
doação de sangue nos 12 meses subsequentes à prática de relações sexuais
por homens com outros indivíduos do mesmo sexo.
O que se defende, portanto, é a
inconstitucionalidade de normas que determinam, de forma absoluta, que
homens homossexuais são inaptos para doação sanguínea pelo período de 12
meses a partir da última relação sexual. Isso porque as normas
questionadas violam o princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1°, III); o direito
fundamental à igualdade, na medida em que se faz distinção entre pessoas
em razão da orientação sexual (art. 5º, caput); o objetivo fundamental
do Estado de promover o bem de todos sem discriminações (art. 3º, IV); e
o princípio da proporcionalidade (art. 5º, LIV)."
A questão é extremamente delicada e demanda uma contextualização mais aprofundada do tema.
A vedação trazida pela legislação impugnada parte da equivocada
premissa de que os homossexuais seriam responsáveis pela formação
exclusiva de grupo de risco – proibido, portanto, de realizar doações de
sangue – unicamente em razão da orientação sexual, que carrega, desde
os primórdios, um fardo discriminatório pesadíssimo.
É importante deixar claro que as normas trazidas tanto pelo
Ministério da Saúde quanto pela ANVISA estimulam o estigma de que os
homossexuais, apenas por terem essa orientação sexual, já fazem parte,
aprioristicamente, de grupo de risco. Sabidamente, o vírus HIV é
transmissível às pessoas independentemente de orientação sexual. Isso
porque relações sexuais desprotegidas tanto entre heterossexuais, quanto
entre homossexuais, são passíveis de transmissão do agente causador da
AIDS.
Nas palavras dos advogados Leonardo Carneiro e Rafael Caneiro
“mantem-se o preconceito e a discriminação contra os homossexuais, que
são colocados como grupo de risco exclusivamente pela orientação sexual,
sem considerar-se o efetivo comportamento sexual de cada indivíduo”.
É preciso considerar que o próprio Ministério da Saúde, na mesma
Portaria 158/2016, normatizou a inaptidão temporária para doação de
sangue para indivíduos que adotem comportamentos arriscados, sejam eles
hétero ou homossexuais. Ou seja, a preocupação do legislador deve ser
com o comportamento promíscuo do doador e não com sua orientação sexual.
Eis o que diz o artigo 64 da Portaria 158/2016:
Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:
II – que tenha feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais;
Isso quer significar que a declaração de inconstitucionalidade do
artigo 64, IV, da Portaria 158/2016 não implicará vácuo normativo capaz
de gerar graves consequências de contaminação e riscos sociais, na
medida em que estarão impedidos de doar todos os indivíduos, mulheres e
homens, homossexuais ou não, que façam parte do grupo de risco – formado
por pessoas que tenham feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais
ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais.
É de fundamental importância ter-se em mente que a OMS preconiza que
5% da população de um país deve regularmente doar sangue para manter os
estoques nos hemocentros. No Brasil, esse percentual veria entre 2% e
2,5%. Ou seja, vivemos em total e absoluta escassez nos bancos de sangue
no Brasil.
Estudos revelam que as normas que proíbem a doação sanguínea por
homens homossexuais impedem a aquisição de 19 milhões de litros de
sangue por ano pelos bancos de sangue brasileiros.
Mas a maior e mais grave consequência desse impedimento
discriminatório tem efeito cultural: a associação da doença como sendo
disfunção especial dos homossexuais, o que não corresponde à realidade.
O Ministério Público Federal ofereceu parecer favorável à procedência
da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Disse o Procurador-Geral da
República, Rodrigo Janot, que o constituinte, com base na dignidade do
ser humano, dedicou-se à erradicação de práticas discriminatórias. “Ao
Estado de Direito não cabe, sob pena de afastar-se de seu centro de
identidade, impor restrições desarrazoadas à autodeterminação da pessoa
em aspecto essencial como é a liberdade de orientação sexual”.
O Ministro Relator da ADI, Ministro Edson Fachin, não só declarou a
importância e urgência jurídica e social que a questão exige, adotando
rito extremamente célere e responsável, como ainda proferiu decisão
cujos fundamentos são dignos de reflexão e merecem transcrição:
“Anoto, desde logo e por oportuno, que aqui se está diante de
regulamentação que toca direto ao núcleo mais íntimo do que se pode
considerar a dignidade da pessoa humana, fundamento maior de nossa
República e do Estado Constitucional que ela vivifica.
Não me afigura correto ou salutar que se
coadune com um modo de agir que evidencie constante apequenar desse
princípio maior, tolhendo parcela da população de sua intrínseca
humanidade ao negar-lhe a possibilidade de exercício de empatia e da
alteridade como elementos constitutivos da própria personalidade."
Sob qualquer ângulo que se olhe para a questão, o correr do tempo
mostra-se como um inexorável inimigo. Quer para quem luta por vivificar e
vivenciar a promessa constitucional da igualdade, quer por quem luta
para viver e tanto precisa do olhar solidário do outro.
Muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam, a impor a célere e definitiva análise da questão por esta Suprema Corte”.
O Ministro relator já pediu que o processo seja incluído em pauta
para julgamento e agora se aguarda definição de data pela Presidente do
STF, Ministra Cármen Lúcia, o que deve ocorrer em breve.
A sociedade, como um todo, aguarda ansiosamente pelo resultado do
julgamento. Aguardemos os próximos capítulos dessa novela que, até
agora, traz retrocessos e discriminação.
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