Depois de diversos atrasos e acumulando uma década de obras,
a transposição do rio São Francisco se afoga em denúncias de corrupção e
irregularidades trabalhistas. Enquanto isso, a seca chega à periferia
de grandes cidades do Nordeste
Vista do alto, a transposição do rio São Francisco pinta a
monótona Caatinga seca com cores extraordinárias. O cinza se mescla ao
verde que destaca a paisagem. Quase uma década depois do início das
obras, o líquido de um dos cursos d’água mais importantes do país começa
a seguir por uma complexa rede de canais que se conectam a aquedutos,
túneis, açudes, estações elevatórias e adutoras sertão afora. Em tempos
de estiagem impiedosa, com a seca mais longa da história (em dezembro de
2016, eram quase 140 açudes completamente vazios), a obra é apresentada
à população brasileira como a solução para as comunidades humanas e
animais que vivem ali.
No entanto, o que seria a melhor alternativa a curto prazo se
transformou em uma extensa rede de corrupção. Considerada o maior
empreendimento de infraestrutura em andamento no Brasil, a transposição
do rio São Francisco – ou Projeto de Integração do Rio São Francisco com
Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (Pisf) – foi iniciada na
gestão do ex-presidente Lula em 2007, mas a ideia remonta ao Brasil
Império (1822- 1889), sonhada por dom Pedro II. A história registra que,
em 1847, o engenheiro cearense Marcos de Macêdo apresentou ao imperador
um esboço do projeto para transposição do São Francisco como solução
para resolver a seca na região.
O projeto atual engloba a construção de mais de 700 quilômetros de
canais, além da recuperação de 23 açudes que devem receber as águas do
Velho Chico. O objetivo central é assegurar a oferta de água, até 2025, a
cerca de 12 milhões de habitantes da zona rural e de pequenas, médias e
grandes cidades. Na área ambiental estão previstas obras de saneamento
básico em 102 municípios, controles de processos erosivos e
desertificação, melhoria da navegabilidade e recuperação de matas
ciliares, entre outras. Tudo muito bem explicado no papel.
Na prática, no entanto, o empreendimento se arrasta em meio a atrasos
e problemas financeiros – foi inicialmente orçado em pouco mais de R$ 4
bilhões, mas está perto de consumir cerca de R$ 8,2 bilhões sem
perspectiva real de finalização para os próximos meses, como a
reportagem da Rolling Stone Brasil constatou em uma série de
viagens à região entre 2015 e outubro de 2016. Para piorar, em dezembro
passado o Ministério Público do Trabalho (MPT) pediu a suspensão
imediata das obras da transposição em função da descoberta de
irregularidades trabalhistas, principalmente nas obras do Túnel
Monteiro, incluindo grave risco de acidentes de trabalho no local.
Mesmo assim e fazendo vista grossa para a realidade – 820 das 1.050
cidades da região dependem hoje de caminhões-pipa para o abastecimento
da população –, o governo federal divulga agora que o Eixo Leste da
transposição ficará pronto nos primeiros meses de 2017. Em visita
recente ao estado de Pernambuco, o presidente, Michel Temer, do Partido
do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), disse que “em fevereiro, no
máximo em março, vamos inaugurar a primeira etapa dessa obra”. Uma
afirmação que chega a ser utópica para quem conhece a realidade do
empreendimento.
As promessas vêm de longe. Voltando no tempo: em 2009, o
ex-presidente Lula, renascido das cinzas do esquema de corrupção do
Mensalão, anunciou que a inauguração da obra ocorreria em poucos anos.
Em um discurso inflamado no interior do Rio Grande do Norte, o líder
petista fez referência a uma passagem bíblica dizendo que somente uma
inundação mudaria seu cronograma. “Eu estou percebendo que a obra vai
ser inaugurada definitivamente em 2012, a não ser que aconteça um
dilúvio ou qualquer coisa”, profetizou.
O mito do dilúvio é uma narrativa em que uma inundação, geralmente
enviada por uma ou várias divindades, destrói a civilização. Lula só não
imaginaria que uma grande enxurrada iria abalar a República controlada
pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Ela não veio em forma de ondas,
maremotos ou tsunamis, mas sim a partir de investigações e denúncias de
uma força-tarefa formada por policiais, procuradores e juízes federais.
Os estragos foram devastadores e abalaram profundamente diversos
políticos brasileiros, entre eles o atual presidente e alguns dos seus
principais ministros.
A primeira denúncia de corrupção envolvendo a transposição do rio São
Francisco aconteceu ainda quando o Exército era o responsável pelos
trabalhos na Caatinga. Na época, em 2011, o batalhão de engenharia
responsável foi acusado de roubo de materiais de construção,
favorecimento de empresas e direcionamento de licitações. O caso foi
revelado pelo jornal Correio Braziliense e, com o escândalo
envolvendo as forças armadas na mídia, as grandes empreiteiras
aproveitaram para ganhar terreno e assumir pouco a pouco os serviços no
interior nordestino, acreditando na impunidade.
Somente em meados de 2015 é que uma reviravolta mudaria os rumos da
obra. Delegados e agentes da Polícia Federal foram a campo para
deflagrar uma operação derivada da Lava Jato e focada especificamente em
desvios na transposição do São Francisco. Denominada de Vidas Secas
– Sinhá Vitória (uma alusão à falta de água no sertão e em referência à
personagem do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos), a operação
resultou em mandados de prisão para empresários, funcionários e doleiros
– alguns dos quais, não tão surpreendentemente assim, já haviam sido
detidos em fases da Lava Jato.
Os desvios, ainda sob investigação, foram realizados pelo consórcio
formado pelas empresas OAS, Galvão Engenharia, Barbosa Melo e Coesa,
responsáveis por dois dos 14 lotes do megaempreendimento. O grupo, do
qual quatro empreiteiras já eram investigadas na Lava Jato, é suspeito
de superfaturamento e de usar empresas de fachada dos doleiros Alberto
Youssef e Adir Assad, condenados por envolvimento no esquema de
corrupção da operação envolvendo a Petrobras.
Apesar de conectada à operação liderada pelo juiz Sérgio Moro, do
Paraná, a nova investigação está sendo realizada pela Polícia Federal no
Recife (PE), independentemente de Curitiba. No entanto, ao perceber que
os alvos eram os mesmos da Lava Jato, os investigadores e os
procuradores federais compartilharam informações com a força-tarefa
paranaense. Na época foram cumpridos 32 mandados, sendo 24 de busca e
apreensão, quatro de condução coercitiva e quatro de prisão. Foram
detidos Elmar Juan Passos, presidente da OAS, Alfredo Moreira Filho,
ligado às empreiteiras Coesa e Barbosa Mello, e Mário de Queiroz Galvão e
Raimundo Maurílio de Freitas, da Galvão Engenharia.
Mas as restrições de liberdade não duraram muito. Três dias depois de
recolhidos à carceragem da PF, os executivos ganharam liberdade por
determinação do juiz Felipe Mota Pimentel de Oliveira, da 38ª vara da
Justiça Federal em Pernambuco. Eles foram detidos no dia 11 de dezembro
de 2015 e soltos no dia 14 do mesmo mês. A decisão, no entanto, só foi
divulgada no dia 21 seguinte. No despacho o juiz entendeu que a prisão
dos executivos não se justificava, já que as operações de busca e
apreensão tinham sido executadas com sucesso.
Em 2016, as obras da transposição voltaram ao cenário policial. Uma
espécie de segunda fase da Vidas Secas, a operação Turbulência teve como
foco um desvio de R$18,8 milhões de uma terraplanagem. O pagamento foi
feito à OAS e o proprietário da empresa receptora, Paulo Cesar de Barros
Morato, foi encontrado morto no quarto de um motel em Recife, alguns
dias depois da operação. A causa da morte foi envenenamento e a polícia
trabalhava com a hipótese de suicídio.
Quando a transposição foi anunciada, no primeiro governo Lula, os
movimentos sociais foram contra a obra. Já havia a proposta do Atlas do
Nordeste, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), para fazer
múltiplas intervenções, de porte médio, por tubulação, abastecendo
praticamente todas as cidades do Nordeste. A corrente contra a
transposição, que tem no padre dom Frei Luís Flávio Cappio sua figura
mais representativa, afirma que a obra é nada mais que uma
“transamazônica hídrica”, e que além de excessivamente cara não será
capaz de suprir a necessidade da população local, uma vez que o problema
não seria a falta do produto, mas a má administração dos recursos
existentes.
O Nordeste é uma das regiões com maior número de reservatórios
artificiais do mundo, com 70 mil açudes que podem armazenar 37 bilhões
de m3 de água, suficientes para abastecer grande parte dos municípios do
semiárido caso diversas obras de distribuição programadas antes da
transposição tivessem sido realizadas.
Para a população contrária à transposição, a melhor forma de amenizar
a seca seria a reforma dos açudes e a construção de poços para captação
de água no lençol freático, além de reservatórios para a coleta da
chuva. Francisco Silva, de 52 anos, mãos e pés rachados por causa da
pesada lida diária na Caatinga, desabafa, relatando que até agora a água
não chegou. “Os funcionários não deixam a gente nem chegar perto do
canal, imagine pegar água”, diz. “Enquanto isso, minhas cabras morrem de
sede aqui, bem ao lado da obra.”
O projeto da transposição do rio São Francisco é um tema polêmico,
pois engloba a tentativa de solucionar um problema que há muito afeta as
populações do semiárido. Trata-se de um projeto delicado do ponto de
vista ambiental, pois está afetando um rio extremamente importante,
tanto pela sua extensão e biodiversidade quanto pela sua utilização para
produção de alimentos, transporte e abastecimento de centenas de
municípios ao longo de seu curso.
Para o engenheiro agrônomo João Suassuna, especialista em recursos
hídricos da Fundação Joaquim Nabuco, o problema não é a falta de água.
“O que não existe é o gerenciamento dos recursos e o estabelecimento de
critérios para seu uso”, garante. Antônio Carlos de Moraes, geógrafo da
Universidade de São Paulo (USP), defende maior participação das
comunidades. “Há muito tempo não há no Brasil uma obra dessa magnitude.
Ela tem um potencial muito grande de transformação, por isso deveria ser
mais discutida com a sociedade.”
A obra prevê a conclusão de dois canais: o Eixo Norte, que levará
água para o interior de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do
Norte, e o Eixo Leste, que beneficiará parte do sertão e regiões do
agreste de Pernambuco e da Paraíba. O Eixo Norte, a partir da captação
no rio São Francisco, próximo à cidade de Cabrobó (PE), percorrerá cerca
de 400 quilômetros cruzando serras através de túneis e conduzindo água
aos rios Salgado e Jaguaribe, no Ceará, Apodi, no Rio Grande do Norte, e
Piranhas-Açu, na Paraíba e no Rio Grande do Norte. O Eixo Leste, que
terá sua captação no lago de barragem de Itaparica, no município de
Floresta (PE), se desenvolverá por um canal de 220 quilômetros, passando
também dentro de um túnel até o rio Paraíba (PB), após deixar parte da
vazão transferida nas bacias dos rios Pajeú e Moxotó, no agreste
pernambucano.
Apesar das incontáveis críticas, há quem acredite no projeto. Segundo
Antônio Evaldo Klar, engenheiro agrônomo da Universidade Estadual
Paulista, coordenador do curso de pós-graduação de irrigação e drenagem
da Faculdade de Agronomia de Botucatu e especialista em estudos sobre o
tema, não existe outra solução para o Nordeste fora da transposição das
águas do São Francisco. “Qualquer outro projeto será apenas paliativo”,
afirma. Ele compara o semiárido nordestino a regiões igualmente secas,
como Califórnia, nos Estados Unidos, ou Israel, onde a escassez de água
foi superada com a transposição de rios.
A engenharia dos eixos de integração consiste em canais de terra com
25 metros de largura e 5 metros de profundidade, com revestimento
composto de uma membrana plástica impermeável e recobertos por concreto.
Nas regiões de travessia de riachos e rios foram construídos aquedutos.
Para ultrapassar regiões de maior altitude, estão sendo construídos
túneis. Nove estações de bombeamento para elevar a água estão em obras
ou já foram construídas: três no Eixo Norte, para vencer altitudes de
165 metros, e seis no Eixo Leste, onde as águas serão elevadas à
altitude de 304 metros.
Vivendo em uma pequena propriedade no Ceará, onde planta cebola,
feijão e milho, Raimundo Filho, de 45 anos, espera dias melhores com as
águas da transposição, ainda que não tenha esperança de que isso ocorra
logo. Por enquanto, ele irriga sua plantação com a água que restou de um
gigantesco reservatório conhecido como Castanhão e que, entre outras
funções, abastece a capital cearense, Fortaleza. “Como não têm caído
chuvas aqui desde 2013, o açude vai secar logo, logo, e aí a situação
ficará complicada. O povo diz que nem tão cedo podemos esperar essa
água, pois a prefeitura precisa fazer uma tal de adutora [rede de distribuição]”, diz desanimado, para em seguida arrematar: “E, se depender dos políticos daqui, o senhor já sabe, né?”
Em vários trechos da transposição as obras caminham a passos lentos
ou foram completamente paralisadas após as investigações da Polícia
Federal terem ganhado proporções nacionais. Em setembro de 2016, a
Mendes Júnior declarou oficialmente sua decisão de deixar as obras de
construção do Eixo Norte, afirmando que não tinha condições financeiras e
técnicas para cumprir os compromissos. A construtora mineira era
responsável por um trecho de 140 quilômetros de extensão entre Cabrobó
(PE) e o reservatório de Jati, no Ceará, incluindo três elevatórias.
Ficou claro que ela se viu em maus lençóis com o desenrolar das
investigações. Além dos problemas com a obra, a construtora está
envolvida nos processos que apuram o esquema de corrupção na Petrobras.
Alguns meses antes, já havia anunciado a possibilidade de abandonar o
projeto, por perda de capacidade financeira. A rescisão contratual com a
Mendes Júnior foi assinada em outubro de 2016, mas antes de abandonar
definitivamente o canteiro de obras o grupo paralisou uma série de
trechos sob sua responsabilidade e fez a demissão de centenas de
trabalhadores, gerando uma crise em cidades como Salgueiro (PE), que
viviam o boom da obra. Rodovias foram interditadas por protestos dos
trabalhadores com salários atrasados e vários comércios fecharam.
Imbróglios como esse demonstram que a transposição ainda está longe
de ser concluída. Conforme o cronograma original, a obra está com um
atraso superior a cinco anos; agora, há a necessidade de uma nova
licitação, portanto deve atrasar, na melhor das hipóteses, em pelo menos
mais um ano. O modelo do novo contrato foi definido em parceria com o
Tribunal de Contas da União (TCU) e as propostas estão previstas para
serem abertas na primeira quinzena de janeiro. Assim, a contratação das
obras só deverá ocorrer em fevereiro de 2017.
Porém, o Ministério da Integração Nacional vem divulgando que 90% da
obra está finalizada e promete a entrega do Eixo Leste, que cruza
Pernambuco até a Paraíba, para os primeiros meses deste ano. Na direção
contrária, nossa reportagem constatou in loco que ainda falta muito para
a conclusão do empreendimento. Basta percorrer os dois eixos da obra
para verificar que sem as adutoras locais, de responsabilidade dos
governos estaduais e municipais, as águas ficarão, no máximo,
concentradas nos grandes reservatórios.
No Eixo Leste, em um sítio próximo à nascente do rio Paraíba, Nelson
Muniz vive ao lado de um forno de carvão – fonte de renda quando a seca
impede a produção da roça ou a criação de animais. Ele vende o saco de
carvão a R$ 9 (de dez a 15 sacos por mês). Parte do carvão provém das
montanhas de lenha que resultaram do desmatamento para abertura dos
canais da transposição e que estão apodrecendo ao longo da obra. No
terreno, restou apenas o forno. Muniz foi indenizado em R$ 37 mil pela
casa que precisou ser derrubada para a passagem da água. Para evitar que
toda a madeira desmatada nos trechos da transposição fosse
desperdiçada, a ideia do governo federal seria doá-la ao programa Fome
Zero, atual Bolsa Família, o que nunca ocorreu.
Antes de deixar o governo, a ex-presidente Dilma disse que para cada
real investido nesses grandes canais serão necessários pelo menos R$ 2
para fazer as obras de distribuição para os municípios. Portanto, se os
canais estão na ordem de R$ 8,2 bilhões, será preciso mais R$ 16 bilhões
para que a água de fato chegue à população. As contradições que cercam o
empreendimento também estão nos discursos do ex-presidente Lula. No dia
15 de setembro de 2006, no interior do Rio Grande do Norte, Lula
afirmou: “Fernando Bezerra ficou três anos como ministro da Integração
tentando trazer a transposição das águas do rio São Francisco e eu já
estou há quatro anos. Já foi feito o projeto, dezenas de audiências
públicas, mas sempre tem uma parcela muito pequena de uma elite que se
acha dona do rio São Francisco e não quer que a gente traga um pouco de
água”. No mesmo dia, em outra cidade, afirmou: “Não é possível fazer
transposição de água que não existe”.
Em 2012, em visita ao canteiro de obras no interior de Pernambuco e
constrangida por não poder fazer a inauguração conforme havia sido
prometida por Lula, a ex-presidente Dilma se pronunciou novamente. “Nós
temos uma clara perspectiva de fazer com que essa obra entre em regime
de cruzeiro. Nós vamos cobrar metas, resultados, resultados concretos”,
afirmou. Já em 2014, durante a campanha pela reeleição e novamente sem a
possibilidade de inaugurar a obra, ela reconheceu: “Eu acho que houve
uma subestimação da obra. Não acredito que uma obra dessas em outro
lugar do mundo leve dois anos para ser feita”.
O TCU já apontou diversas falhas na execução do projeto de
transposição, entre elas irregularidades e negligências no Programa de
Revitalização da Bacia Hidrográfica do São Francisco. Os técnicos do
órgão perceberam, por exemplo, que a vazão do rio e de seus afluentes
pode estar sendo reduzida por causa da erosão de suas margens. O
Programa de Revitalização faz parte da transposição e tem como meta
realizar ações voltadas para a sustentabilidade socioambiental.
Segundo o TCU, ainda não foi possível avaliar a efetividade das ações
voltadas à recuperação e ao controle de processos de erosão no rio
estabelecidos no programa. “O Ministério do Meio Ambiente precisa
apresentar um conjunto de ações para que o problema da erosão da bacia
não se transforme em uma verdadeira agressão ao meio ambiente e à
população local”, alertou o ministro Augusto Nardes, acrescentando que o
não cumprimento das determinações do TCU pode acarretar multas.
O programa de Revitalização do São Francisco tem projetos que visam
garantir alternativas econômicas, principalmente para os ribeirinhos. Um
deles, o que oferece sementes e mudas de árvores frutíferas, tinha
soluções pontuais, assim como os mecanismos propostos para incentivar os
moradores locais a recuperar e preservar as margens do rio, suas
nascentes e encostas. Até agora nenhum hectare de Caatinga foi
recomposto. Recursos sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente
e que seriam destinados à manutenção dos Centros de Referência para
Recuperação de Áreas Degradadas (Crad’s) foram reduzidos, apesar de o
governo divulgar a prioridade do projeto. Os orçamentos foram
contingenciados em 50% e, em alguns casos, como o Crad com base em
Petrolina (PE), praticamente zerados.
Chamado carinhosamente de Velho Chico e conhecido como o rio da
integração nacional, o rio São Francisco é um dos mais importantes do
Brasil. Nasce em Minas Gerais e passa pelos estados da Bahia,
Pernambuco, Alagoas e Sergipe até desaguar no Oceano Atlântico,
percorrendo aproximadamente 2.830 quilômetros. Sua bacia forma uma
região bastante complexa, tanto sob o ponto de vista ambiental,
caracterizado por uma imensa variedade climática, com secas e enchentes
periódicas, como pela grande variedade de ecossistemas naturais e
desconhecida biodiversidade, sendo habitat de várias espécies ameaçadas
de extinção.
Nos âmbitos social, econômico e político a área de influência do rio é
marcada por graves problemas de pobreza, desnutrição, doenças e má
distribuição de renda. Levantamentos atualizados apontam que cerca de 15
milhões de habitantes residem na área de influência do rio, com alta
taxa de migração e êxodo rural. Sozinho, o Velho Chico representa 70% de
toda a oferta regional do produto.
Atualmente, o rio está com apenas 700 m3/s de vazão. Para a
vitalidade ecológica, a vazão deveria ser de 1.200 m3/s. Não se sabe ao
certo quanta água o rio terá até que as obras sejam concluídas e ela
possa finalmente chegar aos sertanejos. “Será que eu ainda vou ver essa
obra funcionando?”, indaga o pernambucano Luiz da Mata, de 57 anos,
iluminado pelo vermelho pôr-do-sol na Caatinga.
Considerada a mais importante obra dos governos petistas, a
transposição se transformou em um escândalo político, mas pior que isso:
deixa o sertanejo desesperado, passando sede, com animais morrendo,
plantações que não vingam, pobreza se alastrando e um rastro de
prejuízos ambientais sem proporção. O iminente colapso no abastecimento
de cidades imensas como Campina Grande, na Paraíba, com mais de 400 mil
habitantes, é assustador.
Para os habitantes desse município, todas as esperanças estavam
depositadas nas águas do São Francisco que cortariam o agreste
pernambucano até chegar à pequena e seca Monteiro, na Paraíba. Dali as
águas entrariam na calha do rio até chegar ao açude Epitácio Pessoa,
mais conhecido como Boqueirão, responsável pelo abastecimento de Campina
Grande e de dezenas de outras cidades paraibanas.
No entanto, os canais da transposição ainda não conseguiram se
conectar ao rio e, para piorar, as chuvas não vieram, deixando a
situação preocupante. A cidade, que enfrenta rodízios cada vez mais
frequentes e tem alguns bairros atendidos por carros-pipa, pode sofrer
um desabastecimento se não chover a tempo de melhorar o nível de seu
principal reservatório. Segundo a Agência Executiva de Gestão das Águas
do Estado da Paraíba (Aesa), até o fechamento desta edição o açude do
Boqueirão estava com pouco mais de 5% de sua capacidade, muito próximo
de deixar o estágio considerado de observação (abaixo de 20% do volume
total) para o de situação crítica (menor que 5% do volume total).
Outro exemplo do dramático quadro tem um carimbo oficial. Mesmo indo
contra um parecer do IBAMA, a Agência Nacional de Águas (ANA) autorizou a
Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), subsidiária da
Eletrobrás, a reduzir a vazão da Usina Hidrelétrica de Sobradinho de 800
para 700 m3/s até o dia 31 de janeiro de 2017. Se essa medida drástica
não fosse tomada, o reservatório chegaria ao final de 2016 com apenas
2,4% de sua capacidade. É o pior cenário em 85 anos.
Na conclusão desta reportagem, o local contava com menos de 12% de
sua capacidade total. Caso as chuvas não amenizem a situação, até mesmo a
geração de energia pode ser comprometida. Sobradinho é a principal
usina produtora de energia elétrica da bacia do rio São Francisco.
Segundo João Henrique Franklin, diretor de operações da Chesf, que
administra o sistema, o problema ocorre por causa da falta de chuvas nos
últimos dez meses. “Essa é a grande caixa-d’água do Nordeste”, ele
resume, detalhando a importância do reservatório. Sobradinho, que ao
nascer deu vida à profecia feita por Antônio Conselheiro afirmando que
“O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, é o reservatório
responsável por liberar as águas que vão percorrer as artérias da
transposição. Sem água, os canais de concreto da obra podem ser
danificados em pouco tempo, reduzindo todo o investimento feito até hoje
a nada. Mas, como escreveu Euclides da Cunha no clássico Os Sertões,
“o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. As obras da transposição
seguem envoltas em uma nuvem de desvios de verba e atrasos, porém os
nordestinos ainda podem contar com a chuva. Se ela vier.
Transposições Planeta Afora
Em outros países, há casos bem-sucedidos de projetos como o que está sendo colocado em prática no São Francisco.
As principais civilizações da Antiguidade surgiram próximas a bacias
hidrográficas e souberam adequar-se a situações de inundações ou de
escassez de água construindo represas e aquedutos. No Brasil, algumas
regiões metropolitanas têm acesso à água por meio de transposições de
rios, caso das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Ainda assim, entre
2014 e 2015 a capital paulista sofreu a maior crise hídrica de sua
história. Geralmente obras de transposição são caras, polêmicas,
ambientalmente contestáveis, estruturalmente complexas e demoradas. Foi o
caso de uma iniciativa recente: o leito do rio mais longo da Ásia, o
Yang Tsé, com 6.300 quilômetros, chegou a Pequim, Tianjin e a outras
cidades do norte da China em 2014, depois de 12 anos de iniciada a obra.
Idealizado em 1952 pelo então líder chinês Mao Tsé-tung, o projeto
passou por dificuldades técnicas que atrasaram sua aprovação em quase
meio século. Estados Unidos e Israel também realizaram obras de
transposição. Na Califórnia, desde 1930 intervenções dessa natureza vêm
sendo realizadas. As principais obras ocorreram entre os rios São
Joaquim, Sacramento e Colorado, abrangendo um vasto programa que envolve
irrigação, abastecimento de cidades, hidrelétricas e turismo.
Reconstrução Falha
Programas de manutenção da flora e da fauna no entorno das obras têm importância, mas apresentam problemas.
Destaque positivo da transposição do rio São Francisco, os 38
programas ambientais estabelecidos pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fazem a diferença em
várias áreas do Nordeste. Apesar de apresentarem problemas, muitos
deles ajudam a ampliar o conhecimento científico em um pedaço do Brasil
até então relegado a segundo plano. Pela primeira vez um empreendimento
desse porte decidiu atacar o desequilíbrio regional envolvendo as
instituições de pesquisa do interior, em especial a Universidade Federal
do Vale do São Francisco (Univasf), para coordenar ações ambientais,
pesquisas científicas e programas sociais.
O Centro de Conservação e Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna),
por exemplo, criado e construído dentro do campus de ciências agrárias
da Univasf, faz o monitoramento de fauna e maneja toda a parte dos
cuidados em cativeiro necessários aos animais silvestres capturados nas
áreas do empreendimento. Nos mesmos moldes foi criado o Núcleo de
Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema), responsável pela área
botânica. O Nema tem como um dos seus objetivos realizar a recomposição
florestal dos trechos afetados pelo desmatamento da obra, criando um
viveiro de referência da Caatinga. Infelizmente, a recomposição da área
ainda não está sendo feita de maneira efetiva. Já o Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia de Arqueologia, Paleontologia e Ambiente do
Semiárido do Nordeste do Brasil (Inapas), ligado ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – e com uma das suas
bases na pequena cidade de São Raimundo Nonato, no Piauí, em parceria
com a Fundação Museu do Homem Americano –, ficou responsável pelo
resgate arqueológico e paleontológico das obras da transposição. O órgão
atua como uma rede de conhecimento entre as instituições brasileiras e
estrangeiras que realizam pesquisas na região Nordeste. Há, no entanto,
pontos preocupantes. O Centro de Referência para Recuperação de Áreas
Degradadas (Crad) de Petrolina (PE), ligado à Univasf e liderado pelo
professor José Alves de Siqueira Filho, ganhador do prêmio Jabuti de
Literatura com a obra A Flora das Caatingas do Rio São Francisco, passa
por uma grave crise. Mantido com recursos do Ministério do Meio
Ambiente, o órgão acaba de demitir quase todos os seus funcionários por
falta de verba. A maior e melhor coleção de plantas da Caatinga, mantida
em um herbário em Petrolina e que é referência internacional, corre
sérios riscos por falta de manutenção.
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