Tommaso Buscetta é provavelmente o
mais notório criminoso que, preso, resolveu colaborar com a Justiça. Um
detalhe muitas vezes esquecido é que ele foi preso no Brasil, onde havia
se refugiado após mais uma das famosas guerras mafiosas na Sicília. No
Brasil, continuou a desenvolver suas atividades criminosas por meio do
tráfico de drogas para a Europa. Por seu poder no Novo e no Velho Mundo,
era chamado de “o senhor de dois mundos”.
Após sua extradição para a Itália, o célebre magistrado
italiano Giovanni Falcone logrou convencê-lo a se tornar um colaborador
da Justiça. Suas revelações foram fundamentais para basear, com provas
de corroboração, a acusação e a condenação, pela primeira vez, de chefes
da Cosa Nostra siciliana. No famoso maxiprocesso, com sentença
prolatada em 16/12/1987, 344 mafiosos foram condenados, entre eles
membros da cúpula criminosa e o poderoso chefão Salvatore Riina, que,
pela violência de seus métodos, ganhou o apelido de “a besta”. Para
ilustrar a importância das informações de Tommaso Buscetta, os
magistrados italianos admitiram que, até então, nem sequer conheciam o
verdadeiro nome da organização criminosa. Chamavam-na de Máfia, enquanto os próprios criminosos a chamavam, entre si, de Cosa Nostra.
Sammy “Bull” Gravano era o braço direito de John Gotti, chefe
da família Gambino, uma das que dominavam o crime organizado em Nova
York até os anos 80. Gotti foi processado criminalmente diversas vezes,
mas sempre foi absolvido, obtendo, em decorrência, o apelido na imprensa
de “Don Teflon”, no sentido de que nenhuma acusação “grudava” nele.
Mas, por meio de uma escuta ambiental instalada em seu local de negócios
e da colaboração de seu braço direito, foi enfim condenado à prisão
perpétua nas Cortes federais norte-americanas, o que levou ao
desmantelamento do grupo criminoso que comandava.
Mario Chiesa era um político de médio escalão, responsável
pela direção de um instituto público e filantrópico em Milão. Foi preso
em flagrante em 17/2/1992, por extorsão de um empresário italiano. Cerca
de um mês depois, resolveu confessar e colaborar com o Ministério
Público Italiano. Sua prisão e colaboração são o ponto de partida da
famosa Operação Mãos Limpas, que revelou, progressivamente, a existência
de um esquema de corrupção sistêmica que alimentava, em detrimento dos
cofres públicos, a riqueza de agentes públicos e políticos e o
financiamento criminoso de partidos políticos na Segunda República
italiana.
Nenhum dos três indivíduos foi preso ou processado para se
obter confissão ou colaboração. Foram presos porque faziam do crime sua
profissão. Tommaso Buscetta foi preso pois era um mafioso e traficante.
Gravano, um mafioso e homicida. Chiesa, um agente político envolvido num
esquema de corrupção sistêmica em que a prática do crime de corrupção
ou de extorsão havia se transformado na regra do jogo. Presos na forma
da lei, suas colaborações foram essenciais para o desenvolvimento de
casos criminais que alteraram histórias de impunidade dos crimes de
poderosos nos seus respectivos países.
Pode-se imaginar como a história seria diferente se não
tivessem colaborado ou se, mesmo querendo colaborar, tivessem sido
impedidos por uma regra legal que proibisse que criminosos presos na
forma da lei pudessem confessar seus crimes e colaborar com a Justiça.
É certo que a sua colaboração interessava aos agentes da lei e
à sociedade, vitimada por grupos criminosos organizados. Essa é, aliás,
a essência da colaboração premiada. Por vezes, só podem servir como
testemunhas de crimes os próprios criminosos, então uma técnica de
investigação imemorial é utilizar um criminoso contra seus pares. Como
já decidiu a Suprema Corte dos EUA, “a sociedade não pode dar-se ao luxo
de jogar fora a prova produzida pelos decaídos, ciumentos e dissidentes
daqueles que vivem da violação da lei” (On Lee v. US, 1952).
Mas é igualmente certo que os três criminosos não resolveram
colaborar com a Justiça por sincero arrependimento. O que os motivou foi
uma estratégia de defesa. Compreenderam que a colaboração era o melhor
meio de defesa e que, só por ela lograriam obter da Justiça um
tratamento menos severo, poupando-os de longos anos de prisão.
A colaboração premiada deve ser vista por essas duas
perspectivas. De um lado, é um importante meio de investigação. Doutro,
um meio de defesa para criminosos contra os quais a Justiça reuniu
provas categóricas.
Preocupa a proposição de projetos de lei que, sem reflexão,
buscam proibir que criminosos presos, cautelar ou definitivamente,
possam confessar seus crimes e colaborar com a Justiça. A experiência
histórica não recomenda essa vedação, salvo em benefício de organizações
criminosas. Não há dúvida de que o êxito da Justiça contra elas
depende, em muitos casos, da traição entre criminosos, do rompimento da
reprovável regra do silêncio. Além disso, parece muito difícil
justificar a consistência de vedação da espécie com a garantia da ampla
defesa prevista em nossa Constituição e que constitui uma conquista em
qualquer Estado de Direito. Solto, pode confessar e colaborar. Preso,
quando a necessidade do direito de defesa é ainda maior, não. Nada mais
estranho. Acima de tudo, proposições da espécie parecem fundadas em
estereótipos equivocados quanto ao que ocorre na prática, pois muitos
criminosos, mesmo em liberdade, decidem, como melhor estratégia da
defesa, colaborar, não havendo relação necessária entre prisão e
colaboração.
Na Operação Lava Jato, considerando os casos já julgados, é
possível afirmar que foi identificado um quadro de corrupção sistêmica,
em que o pagamento de propina tornou-se regra na relação entre o público
e o privado. No contexto, importante aproveitar a oportunidade das
revelações e da consequente indignação popular para iniciar um ciclo
virtuoso, com aprovação de leis que incrementem a eficiência da Justiça e
a transparência e a integridade dos contratos públicos, como as
chamadas Dez Medidas contra a Corrupção apresentadas pelo
Ministério Público ou outras a serem apresentadas pelo novo governo.
Leis que visem a limitar a ação da Justiça ou restringir o direito de
defesa, a fim de atender a interesses especiais, não se enquadram nessa
categoria.
*Sérgio Fernando Moro é juiz federal
0 comentários:
Postar um comentário