O procurador Márcio Fernando Elias Rosa, de 52 anos, acaba de voltar de
uns dias de descanso em sua casa em Monte Verde, um refúgio de 4 mil
habitantes no pé da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais. A pausa
ocorreu depois de passar o bastão da Procuradoria-Geral de Justiça a
Gianpaolo Smanio, eleito numa lista tríplice e nomeado pelo governador
Geraldo Alckmin no último dia 15. Elias Rosa experimentou o topo do Ministério Público do maior estado do Brasil
– foram quatro anos como suplente e outros quatro no comando da
instituição – e agora voltará à sua posição anterior, a de procurador na
área de interesses difusos e coletivos. No ínterim entre deixar um
cargo e ocupar outro, Elias Rosa afirmou à ÉPOCA que o
Poder Judiciário nunca esteve tão exposto. Mas que esse protagonismo é
essencial para ajudar o Brasil a sair da crise e garantir a democracia.
“Se você tem hoje um poder Executivo hesitante, e, tradicionalmente, um
poder Legislativo leniente ao poder Executivo, o único poder que resta é
o Judiciário”, diz. “A Justiça é o esteio do estado democrático de
direito”.
ÉPOCA – A Justiça ficou mais incisiva nos últimos anos. Ao
mesmo tempo, está mais exposta depois de investigações como a Lava Jato.
O que o senhor acha dessa exposição?
Márcio Fernando Elias Rosa – Discute-se muito a judicialização
da política ou a politização do judiciário, que está fadada a acontecer
no Brasil. Se você tem hoje um poder Executivo hesitante, e,
tradicionalmente, um poder Legislativo leniente ao poder Executivo, o
único poder que resta é o poder Judiciário, como um esteio da própria
democracia e do estado democrático de direito. No momento atual, e
talvez isso tenha começado com a Ação Penal 470 (do mensalão), os
partidos políticos e o próprio poder Executivo federal, e em larga
medida o Congresso, ficaram em xeque. Passamos a viver uma grande crise
política. Como se resolve uma crise quando há conflito alheio? No poder
Judiciário.
ÉPOCA – E isso deixa o Judiciário mais exposto...
Elias Rosa – O ideal é que não tivéssemos um Judiciário tão
exposto e tão acionado. Não é razoável que as sessões do Supremo sejam
transmitidas em cadeia nacional como foram outro dia - e como estão
sendo -, o que atrai a atenção da população. Tanto melhor se
estivéssemos discutindo lá questões relativas à dignidade da pessoa. Mas
é claramente a história que estamos vivendo hoje. Temos de mergulhar
nesta crise, e fazer reformas profundas para sair dela um pouco mais
fortalecido. É fundamental a Justiça estar nessa crise. A decisão de
dezembro sobre o rito do impeachment foi um divisor. Poderíamos estar
vivenciando uma crise política muito mais aguda se o Judiciário não
tivesse respondido aquilo da forma como respondeu.
ÉPOCA – Os críticos afirmam que a Justiça arbitra demais sobre outros poderes. O que o senhor acha?
Elias Rosa – O judiciário brasileiro vive uma situação
curiosa. Para o cidadão, ele não funciona. Para a classe política, ele é
invasivo. Para o setor econômico, ele é muito caro. Ou seja, o
Judiciário está no banco dos réus. Quem o coloca nessa situação? É o
cidadão, o Estado, o setor econômico e o produtivo. O judiciário é
estático, ele atua por provocação. Vivemos de fato um instante de crise.
Muitas das questões que não deveriam ser levadas ao Judiciário são
colocadas em pauta - mas não é pelo cidadão, é pelo próprio estado e
pela classe política. O ideal é que não tivéssemos de entrar a madrugada
adentro para discutir o rito do impeachment, mas é a realidade. Me
preocupa o discurso de que há um excesso de judicialização no Brasil.
São 100 milhões de processos em andamento: 60% deles promovidos pelo
Estado; 30% pelo setor produtivo e serviços concedidos, como bancos e
telefonia; e só 10% pelo cidadão comum.
ÉPOCA – A Justiça continua inacessível ao cidadão...
Elias Rosa – Sem dúvida. Precisava o judiciário deixar de
servir exclusivamente o próprio Estado ou o setor produtivo, e se
encontrar outras formas de composição. Precisamos criar instâncias de
conciliação de conflitos. Mas esse discurso não pode ser patrocinado
pelo judiciário. Tem de ser feito pelo Ministério Público, pelas
associações de classe, sindicatos. Vamos criar câmaras de conciliação
nos conselhos das cidades. Assim como há na tutela da criança e do
adolescente, vamos criar câmaras de conciliação de conflitos. O
Judiciário não pode recusar o atendimento sob a pecha que está
judicializado demais. É o mesmo que o médico dizer ao doente: ‘por
favor, vá procurar uma benzedeira’.
ÉPOCA – O fato do juiz Sergio Moro ser estrela das manifestações preocupa o senhor?
Elias Rosa - É uma consequência do que ele está apreciando e
julgando, que é sério e grave. Mas não acho ruim, porque ele tem uma
característica que me agrada, ele sabe dominar a vaidade. Já vi situação
de exposições maiores de quem atua num processo, enquanto profissional.
Não é o caso do Moro. Mais de 90% das decisões dele são confirmadas
pelos tribunais.
ÉPOCA – Além da delação premiada, quais outras medidas podem ser adotadas no Brasil na tentativa de combater a corrupção?
Elias Rosa – Primeiro, temos que alterar a lei de licitação,
para modernizá-la. Ela é burocrática e cria dificuldade para vender
facilidade. Estabelece rito excessivo, dificulta a contratação e, muitas
vezes, só encarece os contratos e não garante qualidade. Veja o caso da
máfia da merenda em São Paulo. Em julho do ano passado, uma pessoa da
sociedade da cooperativa denunciou a fraude que estaria ocorrendo em 20
municípios num contrato da secretaria da Educação, que era para fornecer
suco de laranja. A questão aí é o modo como o Estado estabelece a
contratação, que facilita a corrupção. Tinha tudo para dar errado. Eles
simulavam uma cooperativa e contavam com a garantia de uma diretriz do
Estado, segundo a qual 30% da merenda pode ser contratada com "dispensa
de licitação", se for direto de pequenos agricultores.
ÉPOCA – Sem contar os lobistas, que cobravam pedágio para intermediar os contratos com dinheiro público...
Elias Rosa – O lobby precisa ser profissionalizado. Esse
intermediário entre a classe política e o produtor precisa ter sua
função legalizada, assim como o tradutor e o intérprete. Ou seja,
trata-se de um profissional liberal. Nós nunca conviveremos com a
ausência dessa figura. Hoje, ele atua nas sombras. Ninguém enxerga
exatamente a sua real identidade.
ÉPOCA – Qual foi o grande desafio da sua gestão?
Elias Rosa – Sem dúvida, a PEC 37 (rejeitado na Câmara dos
Deputados, o projeto retirava o poder de investigação criminal do
Ministério Público). Se a PEC 37 tivesse sido aprovada, como se
imaginava em 2012, o MP teria inviabilizado o poder de investigação em
grande parte do que vimos nos últimos anos. Seja relacionado à ação
penal 270, do Mensalão. Ou ainda as questões relacionadas à Operação
Lava-Jato. Não que essas investigações não tivessem ocorrido. Mas
poderiam ter sido mais difíceis de ser apuradas, um processo mais
vagaroso. O ideal é a ação integrada.
ÉPOCA – Na prática, essa parceria não funciona. Muitas vezes, o
MP e a polícia competem. E acabam por prejudicar a investigação....
Elias Rosa – O Brasil padece de um excesso de corporativismo.
Isso faz com que as instituições queiram se impor, atuando isoladamente.
É menos o resultado e mais a atuação isolada. Toda vez que isso
acontece, há um fracasso. A grande responsabilidade do gestor é orientar
para que isso não ocorra, criar instancias de aproximação. Aqui em São
Paulo, conseguimos criar dois órgãos de atuação integrada. As pessoas
sentam e prestam contas, conversam com certa regularidade.
ÉPOCA – E o que faltou fazer nos seus dois mandatos? Não existe
em São Paulo, por exemplo, um braço do MP especializado em crimes
cibernéticos...
Elias Rosa – O Estado sempre vai a posteriori da prática do
crime. Primeiro surge a prática delituosa, depois você se aperfeiçoa.
Hoje o modelo de atuação em casos como esse, assim como em transações
bancárias, delitos econômicos, é o local. Não é suficiente. Eu tinha um
projeto de criação de uma promotoria para delitos cibernéticos, mas não
identificamos demanda. Então mudei a prioridade, para violência de
gênero.
ÉPOCA – Por que o senhor aceitou designar promotores específicos para cuidar do caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Elias Rosa – Não gosto dessa ideia de um promotor de Justiça
especialmente designado para um caso. A ideia de promotor de encomenda,
promotor de gaveta, promotor designado... Não dá certo. No caso dos
promotores (Cássio Conserino, José Carlos Blat, José Reinaldo Guimarães
Carneiro e Fernando Henrique de Moraes Araújo), eles pediram a
designação. O promotor natural, o que foi sorteado, me disse: ‘Eu
gostaria que eles trabalhassem junto comigo’. Então designei todos, sem
problema nenhum. Não é ilegal o que eles fizeram, é absolutamente
regular.
ÉPOCA – Antes de decidir se um promotor não sorteado pode pegar
um caso solicitado o senhor faz algum tipo de pesquisa? Procura saber,
por exemplo, sua inclinação política?
Elias Rosa – Não, absolutamente nada. A gente parte do
pressuposto que todo mundo tem neutralidade e isenção. Neutralidade em
relação ao fato e isenção em relação à pessoa. Abomino a ideia de
promotor de Justiça participar de manifestações públicas a quem quer que
seja. Não combina com o ofício do MP. Sobretudo ser for promotor
eleitoral.
ÉPOCA - O senhor sofria pressão como procurador-geral?
Elias Rosa – Em São Paulo, não tem nenhuma crise próxima à Lava-Jato... Com margem para grandes pressões.
ÉPOCA - Tem um esboço, a máfia da merenda...
Elias Rosa - Não tivemos nenhuma situação de estresse em que
isso pudesse ter sido colocado à prova. A atuação do Ministério Público
nos estados é diferente da do federal. O governador do Estado é
processado em Brasília, assim como os deputados federais. Em São Paulo, a
maior repercussão que tivemos foi com o caso dos trens da CPTM e do
Metrô. Os acordos de leniência foram firmados em 2012, com o CADE, e o
Ministério Público Estadual participou naqueles primeiros termos de
leniência. Então foram designados promotores para atuar naqueles casos,
foram oferecidas nove ou 10 denúncias, foram ajuizadas ações de
improbidade, mas mesmo nesse caso não houve crise ou conflitos.
ÉPOCA – Depois de anos de investigação, ainda há muito para avançar nesse caso. Por que a demora?
Elias Rosa - Salvo engano, são nove denúncias oferecidas
contra umas 30 pessoas. Inclusive em ações de improbidade. Vale lembrar
que esse caso do metrô envolve conselheiro do Tribunal de Contas do
Estado (Robison Marinho), que está afastado do Tribunal a pedido do
Ministério Público. Tem outra característica: os fatos são de 2001 e
2002, uma década e meia atrás, não se trata de um fato recente.
ÉPOCA – Há rumores de que o senhor irá para a Secretaria de Segurança Pública caso o Alexandre de Moraes se torne ministro...
Elias Rosa - Não ouvi isso ainda. Falando sério, não tem
mesmo. Esse é um filme que já vi acontecer, inclusive com o Fernando
Grella. Mas, enquanto procurador-geral, ninguém te aborda, até porque se
trata de um cargo muito importante na estrutura política. Na saída, só
se faz a abordagem se tiver necessidade. E se criar uma relação de
confiança, que hoje não existe. Nem tenho perspectivas de que isso que
possa acontecer.
ÉPOCA – Se fosse convidado, o senhor aceitaria?
Elias Rosa - Não sei. Primeiro, teria que me envolver em razão
do projeto. Porque quis ser procurador-geral? Tinha muito claro isso há
quatro anos. Era para poder criar a promotoria de violência doméstica, a
campanha sobre intolerância, um MP social.
ÉPOCA – E qual é seu grande objetivo agora?
Elias Rosa - Quero voltar para a minha procuradoria de
direitos difusos. Também dei aula a vida toda. Talvez volte para o
magistério. Fiquei quatro anos como sub do Fernando Grella, e depois quatro anos como procurador-geral, então são oito anos na procuradoria. Preciso descansar.
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