A aparente infertilidade do semiárido nordestino esconde uma grande biodiversidade vegetal. Entre as utilidades da flora local está o uso de espécies nativas para alimentação de gado.
Uma
parte importante da atividade pecuária no sertão nordestino é realizada
em pequenas e médias propriedades. (foto: Marcelino Ribeiro / Embrapa
Semiárido)
Quem pensa no sertão como uma região
pobre em biodiversidade pode se surpreender com o número: ali existem
cerca de três mil espécies vegetais, nativas ou exóticas, que se
combinam e formam a flora da caatinga. Um estudo da Embrapa Caprinos e
Ovinos sinalizou que esta é uma importante fonte de alimento para as
criações de gado locais, dispensando a criação de pastos artificiais e
garantindo aos rebanhos alimento ao longo de todo o ano.
A
pecuária extensiva – em especial a de pequenos ruminantes, como cabras,
bodes, ovelhas e carneiros – é uma importante atividade produtiva para
as populações do Nordeste, onde as condições climáticas são
desafiadoras. “Caprinos e ovinos são animais que precisam de quantidades
menores de alimento [em comparação ao gado bovino] para se manter e
produzir leite, carne, couro e lã. Por esse motivo, são os rebanhos
dominantes e a principal fonte de fornecimento de proteína para as
populações de regiões áridas e semiáridas do mundo”, contextualiza a
zootecnista Ana Clara Cavalcante, que liderou a pesquisa.
O
Nordeste brasileiro concentra mais de 90% do rebanho caprino e quase 60%
do rebanho ovino do país, dos quais boa parte está distribuída em
pequenas e médias propriedades rurais. Ali, durante décadas, a pecuária
foi realizada de modo irracional e predatório, com o desmatamento da
vegetação nativa para criação de áreas de pastagens.
Cientistas
observaram, entretanto, que, durante longos períodos de seca, a perda de
rebanho era grande em regiões mexidas pelo homem, mas mínima em locais
pouco alterados. Foi o ponto de partida para a hipótese de que a
vegetação local constituía a dieta mais apropriada para os animais de
criação.
Existem, no semiárido, muitas plantas indicadas para o
consumo animal, dentre as quais destacam-se as forrageiras, de gosto
agradável aos rebanhos, fácil digestão e alto valor nutricional. As mais
comuns incluem gramíneas (capins buffel, mimoso, massai e outros) e
leguminosas (leucena, gliricídia, catingueira, moringa), além de outras
vegetações como milho, sorgo e capim-elefante. “As secas frequentes
fizeram surgir também a categoria das plantas não convencionais, como a
flor-de-seda, cactáceas nativas (mandacaru, xique-xique), faveleira e
outras tantas plantas que se adaptaram a situações de maior déficit
hídrico e são bem aceitas pelos animais”, completa Cavalcante.
Para
a pesquisadora, a alimentação animal deve seguir um cardápio variado e
dinâmico, que envolva diferentes espécies vegetais que se alternam ao
longo do ano. “Plantas exóticas podem compor a dieta em harmonia com o
cardápio de nativas, especialmente nas épocas do ano onde a oferta de
nativas é reduzida”, aposta.
Manejo sustentável
Tendo
em vista estes períodos de estiagem, comuns à região, os produtores
precisam administrar continuamente seus rebanhos e os recursos
alimentares disponíveis, por meio da aplicação de técnicas de manejo
sustentável. Cavalcante é incisiva em sua sugestão de aproveitar as
espécies vegetais locais: “A manipulação da caatinga para fins pastoris
pode triplicar a capacidade de suporte de animais de uma área, sem
causar degradação no ambiente”, garante. O manejo adequado permite ganho
de peso e produção de leite mesmo durante a época seca.
São três
as principais técnicas empregadas: raleamento, rebaixamento e
enriquecimento. O raleamento consiste no corte seletivo de vegetações de
menor importância para que outras, de maior valor forrageiro e
madeireiro, possam se expandir. O rebaixamento, por sua vez, é o corte
da copa de árvores e arbustos mais altos para que fiquem acessíveis ao
pastejo de rebanhos de pequeno porte. Já o enriquecimento baseia-se na
introdução de espécies perenes na região, sempre precedida de estudos
cautelosos.
“Experiências têm mostrado que a
construção coletiva de saberes, considerando o conhecimento popular e o
científico, tem gerado resultados mais inovadores para os sistemas de
produção"
Por fim, o último mecanismo recomendado é o orçamento
forrageiro, uma ferramenta desenvolvida pela Embrapa que auxilia os
produtores rurais a controlarem seus estoques forrageiros (em forma de
feno ou silagem) em razão da demanda de seus rebanhos. Este tipo de
parceria é imprescindível para o avanço socioeconômico da região.
“Experiências têm mostrado que a construção coletiva de saberes,
considerando o conhecimento popular e o científico, tem gerado
resultados mais inovadores para os sistemas de produção. São valiosas
essas experiências e têm um potencial muito grande de inovação, porque
os reais beneficiários participam de forma ativa no processo de
desenvolvimento da tecnologia”, afirma Cavalcante.
Entusiasta da
biodiversidade local, a pesquisadora sugere que a vegetação da caatinga
pode ser utilizada também para outros fins econômicos – como a produção
de fármacos, cosméticos e óleos essenciais ou a alimentação da própria
população local – e argumenta que a região merece estudos mais
aprofundados. “Este é o melhor exemplo de resiliência que temos. Diante
dos cenários futuros das mudanças climáticas, o mundo inteiro pode
aprender com a caatinga a sobreviver, produzir e se manter de forma
digna em regiões semiáridas, cujas extensões territoriais tendem a
aumentar”, conclui.
Marcello Lobo
Instituto Ciência Hoje/ RJ
Instituto Ciência Hoje/ RJ
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