Um imperador, escravos, presidentes, imigrantes alemães, refugiados cubanos e até mesmo um papa: todos foram seduzidos pelos charutos baianos.
Foto: Marcio Pimenta
Digo ao meu tio Genival Dias que estou trabalhando em uma reportagem sobre a produção de tabaco no
Recôncavo Baiano, e ele então sorri. Recosta-se na cadeira de balanço e
olha para o enorme campo verde à sua frente: onde antes havia pés de
fumo a perder de vista, agora se veem laranja, limão e tangerina. Aos 64
anos, Dias começa a desfiar suas memórias. “No período da colheita, nas
tardes ensolaradas, todas aquelas mulheres sentavamse no chão dos
terreiros pra amarrar as folhas de tabaco”, diz ele. “Para onde ia tanto
fumo?”
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Ele mesmo dá a resposta. O fumo chamado mata-fina-bahia-brasil (Nicotiana tabacum), um tabaco escuro destinado à fabricação de charutos,
era exportado para boa parte do planeta. Sua história começou ainda no
período da escravidão, foi afetada por duas guerras mundiais e
contribuiu para a afirmação e independência da mulher na Bahia. Gerou
fortunas e disputas familiares – uma traição quase levou um brasileiro a
cair nas mãos dos nazistas. Sua história é tão importante que aparece
no brasão da república – o fumo está lá, florido, do lado esquerdo,
formando uma coroa, juntamente com um ramo de café frutificado, sobre um
resplendor de ouro.
Na condição de colônia de Portugal, o Brasil não podia produzir
manufaturas. Por isso, toda a lavoura fumageira baiana era destinada à
exportação, servindo até mesmo como moeda de troca para a compra de
escravos na África. O cenário só começou a mudar após a independência:
em 1842, o português Francisco José Cardoso abriu a primeira fábrica no
Brasil, a Charutos Juventude, em São Félix, no Recôncavo Baiano. Vieram
em seu encalço dezenas de novas fábricas, em lugares como Cachoeira,
Cruz das Almas, Governador Mangabeira, Maragojipe, Muritiba e São
Gonçalo dos Campos. Indústrias que nasceram, morreram e ressurgiram das
cinzas ao longo dos últimos dois séculos foram protagonistas de um
evento inédito no Brasil daqueles tempos: o desenvolvimento industrial
no interior do país.
Na cidade de São Félix, o Centro Cultural Dannemann, em um prédio do
século 19, é uma espécie de showroom do charuto baiano de hoje. Mulheres
vestidas com saias coloridas manufaturam o tabaco diante de turistas,
muitos deles estrangeiros. “Aroma, sabor e combustibilidade, os
elementos que formam um bom charuto”, anuncia Luiz César Araújo,
sommelier da fábrica local, enquanto deixa a fumaça sair suavemente da
boca e das narinas. Tento repetir o gesto calmo ao fumar, mas a cinza
cai do charuto e se espalha pelo meu colo. “Não se preocupe. A cinza é
um bom indicador. Ela é branca, não irá manchar a sua roupa”, me
tranquiliza ele.
As charuteiras
Em Cuba, pátria mundial dos grandes charutos, a maioria dos
trabalhadores é homem. Mas, no Brasil, impera a mão de obra feminina.
“Empregamos numa proporção de dez mulheres para um homem”, conta Marcos
Augusto Souza, diretor do Sindicato da Indústria do Tabaco no Estado da
Bahia. Antes da explosão da indústria do charuto, o plantio de fumo era
conhecido como “lavoura do pobre”, cultivada por pequenos agricultores
sem acesso a crédito. Como a lavoura era pouco lucrativa e exigia menos
esforço físico, a solução foi usar escravos mais baratos, como mulheres,
idosos e crianças. Mesmo após a abolição, a situação se firmou de tal
forma que, agora, poucos homens estão dispostos a atuar em um setor
essencialmente feminino. “Como tinham salário, as charuteiras romperam
padrões. Participavam de festas populares e tomadas de decisão em casa. É
a independência da mulher pela condição em que está inserida”, diz a
historiadora Rosana Falcão Lessa.
Certa manhã, acompanho um grupo de mulheres descer de um ônibus rumo a
um grande campo de cultivo na zona rural de Governador Mangabeira. Estão
todas uniformizadas, com lenço na cabeça e bota plástica para se
proteger de animais peçonhentos. Sorriem e cantam enquanto, em fila,
regam o terreno durante a manhã. À tarde, começa o plantio. Dividem-se
em grupos de três: a primeira joga as mudas no chão, a segunda planta e a
terceira molha o terreno mais uma vez. Quase não há homens – os poucos
que estão ali se ocupam apenas de tarefas como demarcar a área de
plantio, segurança, carregar caixas e dirigir caminhões e tratores.
“Aqui, consegui o meu primeiro emprego. Tenho uma filha, e o pai dela me
deixou. Hoje estou casada, mas sou independente”, diz Núbia Ramos dos
Santos. “Se não fosse pelos charutos, dificilmente eu conseguiria
emprego em outro lugar.”
O domínio e declínio alemão na Bahia
A primeira gigante dos charutos brasileiros surgiu em 1851: a Fábrica
Utilidade, depois renomeada Costa Penna. A repercussão atraiu diversos
imigrantes e empresários, sobretudo alemães, grandes apreciadores. Entre
eles estavam os irmãos Gerhard e Reinhard Dannemann, que chegaram à
Bahia para fundar a empresa com o sobrenome da família. Com apenas dez
anos de existência, já eram tão prósperos e famosos que o imperador dom
Pedro II lhes outorgou o direito de usar o nome “Imperial Fábrica de
Charutos”. A consolidação da Dannemann marcou o início do domínio alemão
no fabrico de charutos na Bahia. Logo surgiria a Suerdieck, em
Maragojipe, que mais tarde monopolizaria o mercado, tornando-se uma das
maiores do mundo. Com as três gigantes exportando milhares de toneladas
de tabaco e milhões de charutos, o fumo tornou-se um orgulho nacional. O
sucesso era tão grande que, em 1906, ao saber que o papa Pio X era um
apreciador, a fábrica baiana Stender & Cia. lançou uma marca com o
nome do pontífice. Outro que não resistiu foi o então presidente Getúlio
Vargas, que, em sua passagem pela Bahia em 1933, fez questão de visitar
as fábricas da Dannemann e da Costa Penna. Com o tempo, a Suerdieck
produziu a marca Getúlios, em homenagem ao presidente.
“O nosso tabaco é o ‘sal e a pimenta’, o tempero para os outros”, conta
Marcos Augusto Souza. Exceto pelos cubanos, quase todos os charutos do
mundo, até hoje, usam, em sua composição, uma camada das folhas do
tabaco baiano.
Em pleno apogeu, porém, a economia do tabaco sentiu o impacto causado
pela Segunda Guerra Mundial. Das três gigantes, a Suerdieck foi quem
teve a melhor sorte, mas por pouco. Geraldo Suerdieck, nascido no Brasil
e principal herdeiro da família, encontrava-se em Hamburgo, fazendo
estágio em um banco para no futuro assumir o controle da empresa. A
Gestapo, a polícia secreta alemã, recebeu uma denúncia de que ele e o
pai, Gerhard Meyer Suerdieck, estavam traindo a Alemanha. O pai, ao
perceber o clima de fanatismo e adoração a Adolf Hitler, entendeu que a
guerra era iminente. Gerhard viajou para a Itália, até Nápoles, e de lá
tomou um navio para a Bahia. Geraldo, ainda em terras alemãs, foi preso e
interrogado, mas, graças à intervenção do banqueiro Julius Peters,
amigo da família, foi liberado. Soube-se depois, através da própria
Gestapo, que a denúncia havia partido do Brasil – de Karl Horn, sócio da
empresa e simpatizante do nazismo. Ele esperava que, com a denúncia, a
família Suerdieck fosse presa – assim, assumiria o controle da empresa.
Com o fracasso do plano, Horn foi afastado. A Suerdieck se livrou do
único sócio alemão, garantindo que a empresa se tornasse totalmente
brasileira e não sofresse intervenção do governo.
Foi esse também o esforço da Dannemann, num mundo então dividido entre
países aliados e do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Numa tentativa de
desassociar sua imagem dos alemães, a empresa passou a publicar anúncios
nos jornais enfatizando ser uma empresa 100% brasileira. Em agosto de
1942, contudo, cinco navios mercantes brasileiros foram torpedeados por
um submarino alemão, o U-507, em plena costa do Nordeste, com a morte de
607 pessoas. O povo foi às ruas, exigindo a entrada do Brasil na
guerra. Imigrantes passaram a ser insultados e instituições alemãs foram
saqueadas e depredadas. O Brasil rompeu as relações diplomáticas e
comerciais com os países do Eixo.
Nas fábricas Dannemann, brasileiros se recusaram a trabalhar sob o
comando de alemães. O governo interveio. A empresa só foi devolvida à
iniciativa privada após o fim da guerra, em 1945. Mas a má administração
durante a intervenção levou a Dannemann a uma crise que culminou no fim
de suas atividades, em abril de 1955.
As trágicas circunstâncias pareceram favorecer os brasileiros da Costa
Penna, que exportava milhões de charutos para as tropas dos Aliados. No
entanto, o drama continuou – como que postergando uma espécie de
maldição sobre os charutos brasileiros. Primos e sócios majoritários,
Luiz da Costa Penna e Manoel da Costa Ferreira Júnior se desentenderam.
Manoel tentou o suicídio jogando-se de uma janela do primeiro andar da
fábrica. Sobreviveu, mas com ferimentos graves. Luiz Penna, em meio aos
problemas, sofreu um derrame. “Os dois se recuperaram, mas Luiz ficou
com todas as ações da fábrica e apostou na mecanização do fabrico de
charutos populares. Infelizmente, os cigarros já estavam fortes no
mercado. A crise foi rápida e fatal”, conta Ubaldo Marques Porto Filho,
ex-funcionário da Suerdieck. Assim, caía a segunda gigante da indústria
dos charutos.
A chegada dos cubanos
Anos depois, em Cuba, Fidel Castro, acompanhado do seu irmão Raúl, de
Camilo Cienfuegos e de Ernesto “Che” Guevara, descia a Sierra Maestra
para promover a Revolução Cubana – e, a reboque, a estatização das
empresas privadas. Entre elas estava a fábrica de charutos Garcia y
Cia., proprietária da famosa marca Montecristo. A fábrica pertencia a
Alonso Menendez, que teve de deixar o país às pressas, junto com toda a
família. Destino: Ilhas Canárias. “Na fábrica do meu pai trabalhavam 900
pessoas. Desde cedo aprendi a lidar com charutos”, conta Félix
Menendez, herdeiro da família. “Estudei no Colégio Jesuíta de Belém, o
mesmo que Fidel”, continua ele, antes de fazer uma longa pausa. Pergunto
se a recente reaproximação entre Estados Unidos e Cuba seria uma porta
que se abriria para ele visitar seu país. “Não conheço mais ninguém lá”,
me responde, secamente. “Quando Fidel morrer, tomarei uns bons uísques.
É tudo o que sei.”
Para produzir nas Canárias, os Menendez adquiriam folhas do Recôncavo
Baiano, comprando-as do produtor Mário Amerino da Silva Portugal. Os
negócios e a amizade entre eles foram se estreitando até que Mário
convidou Benjamin e Félix, filhos de Alonso Menendez, já falecido, a
viver na Bahia. Nascia assim, em São Gonçalo dos Campos, a Menendez
& Amerino. Os cubanos logo ficaram amigos de personalidades locais,
como o escritor Jorge Amado – em homenagem a ele, criaram a marca Dona
Flor.
A chegada dos cubanos coincidiu com uma mudança radical no mercado
mundial do fumo. Após a Segunda Guerra, os cigarros, mais práticos e
baratos, invadiram o mercado. Suerdieck e outras empresas menores se
viram em apuros. Como a produção local era mais voltada para a
quantidade que para a qualidade, os baianos ainda perderam terreno para
fabricantes do Caribe e da Europa. Muitas empresas faliram. “Em 1977,
quando chegamos, a Suerdieck era a maior fabricante do mundo de charutos
feitos a mão. Mas não eram charutos premium”, diz Félix Menendez.
Tentando dar a volta por cima, a Suerdieck apostou suas fichas em uma
nova safra, com mudas da Sumatra. Mas uma praga comprometeu a plantação.
Em 1999, a Suerdieck, a terceira gigante dos charutos, quebrou. A
população do Recôncavo custou a acreditar.
Restaram a Dannemann, que voltava ao mercado pelas mãos do grupo suíço
Burger Söhne, e a Menendez & Amerino, além de algumas marcas
menores. A Dannemann procurou se concentrar na exportação do fumo cru
para a Indonésia, onde os custos com a mão de obra são menores, e
manteve uma produção de pequena escala de charutos de alta qualidade em
São Félix. Hoje, as empresas sofrem com as tendências antitabagistas.
Instituições como a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde
do Brasil não fazem diferenciação entre o cigarro e o charuto (puro,
sem substâncias químicas).
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Para piorar, em 2000, o governo brasileiro, para ajudar a economia
cubana, isentou os charutos procedentes da ilha do pagamento de
impostos, enquanto sobrecarregou de impostos e tarifas os nacionais. Em
qualquer tabacaria do Brasil, é mais barato adquirir charutos cubanos
que os brasileiros. O custo da mão de obra é mais um ponto fundamental.
Segundo os fabricantes, Cuba paga uma média de 12 dólares mensais. A
República Dominicana e a Nicarágua, outros fortes concorrentes, 200. Já o
Brasil, 700. “Poderíamos concorrer, mesmo com esses valores; o problema
são os encargos e a isenção de impostos para charutos do Caribe na
União Europeia e nos Estados Unidos – exceto Cuba. Já os nossos charutos
pagam 26%”, conta Joaquín Menendez, sobrinho de Félix. “Não há como
competir.”
Proibidas por uma lei do Banco Central, a cadeia produtiva do fumo não
pode tomar empréstimos bancários destinados à produção de fumo, e mesmo
ações culturais estão proibidas. “Nem no Carnaval colocamos mais
dinheiro”, lamenta Félix. O cubano de alma brasileira segue a vida,
fazendo o que gosta, mas sem entender por que não pode promover um
produto que, afinal, é parte insolúvel da história da Bahia e do Brasil.
“De camanduá [feixe de folhas de tabaco, com cerca de 10 quilos] em
camanduá, as vendas ficavam lotadas, assim como os armazéns, que
desaguavam nos exportadores e nas fábricas. Era um viés econômico
importante”, recorda-se meu tio.
Na época áurea, o mundo todo parecia caber no Recôncavo Baiano. “Assim
como eu não entendia para onde ia tanto fumo, também não entendo por que
tudo mudou tão de repente”, lamenta ele, e deixa a cadeira balançar.
Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL ONLINE
| Por: Marcio Pimenta
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