Penhascos argilosos logo além da divisa do parque constituem uma fonte natural de sal, que atrai animais como estas araras-vermelhas-grandes. Mais de mil espécies de ave – um décimo de todas as existentes no planeta – vivem na reserva ou em áreas circundantes - Foto: Charlie Hamilton Jame
Não mais do que mil índios matsigenkas vivem no parque que ocupa a
bacia do Rio Manu e seus afluentes. Eles plantam e caçam na floresta,
mas apenas para subsistência. Os macacos-aranha são um dos seus alvos – e
também os animais de estimação favoritos.
Elias Machipango Shuverireni agarra o longo arco feito de palmeira e as
flechas de bambu com ponta aguçada. Estamos saindo para caçar macacos
no Parque Nacional do Manu – um imenso trecho de floresta úmida protegida e um dos parques com maior biodiversidade em todo o planeta.
Essa caçada não é ilegal. Elias pertence ao povo indígena Matsigenka.
Quase mil deles vivem no parque, concentrados nas margens e nos
afluentes do Rio Manu. Todos os índios do parque – desde tribos ainda
não contatadas até os matsigenkas – têm o direito de colher plantas e
abater animais para uso próprio, embora não possam usar armas de fogo.
Elias e a sua mulher cultivam mandioca, algodão e outras safras de
subsistência em uma clareira à beira do Rio Yomibato. Os filhos coletam
frutos e plantas medicinais. Elias pesca e derruba árvores. E caça,
sobretudo macacos-aranha e macacos-barrigudos, os alimentos prediletos
dos matsigenkas. Ambas as espécies estão ameaçadas de extinção.
Há muito tempo por ali a vida vem nessa toada, mas agora que os
matsigenkas estão ficando mais numerosos cresce a preocupação de alguns
biólogos com o destino do parque. E se a população indígena dobrar? E se
caçarem com armas de fogo? Os macacos sobreviveriam? Caso desapareçam
essas espécies, responsáveis pela dispersão das sementes de árvores
frutíferas à medida que se alimentam, como vai ficar a floresta?
Enquanto, fora do parque, as áreas de mata se mostram cada vez mais
fragmentadas devido à exploração de gás natural, à mineração e à
atividade madeireira, na reserva a proteção é um assunto crucial. Assim
como a questão: o fato de que há pessoas vivendo em seu interior é bom
ou ruim? E o parque é bom para as pessoas?
Com 53 anos, Elias tem cabelo preto crespo e um olhar intenso. Veste
apenas uma camisa de futebol verde, calção e chinelos. Em novembro
passado, enquanto cruzamos as suas plantações para entrar na mata, num
dia abafado e úmido, estamos acompanhados do seu genro, Martin; da sua
filha, Thalia; e de uma neta adolescente. Tal como Elias, Martin leva um
arco e flechas. Thalia tem uma faixa atravessada no peito para carregar
as plantas coletadas. Outro presente é o antropólogo Glenn Shepard, que
passou 30 anos convivendo com os matsigenkas – é um dos raros
forasteiros que dominam a língua dos indígenas.
Depois de cinco minutos na mata, soam os chamados dos
sauás-de-barriga-vermelha, macacos que costumam servir de alvo para os
adolescentes treinarem a mira. Outros cinco minutos e ouvimos um bando
de macacos-prego-de-cara-branca. Elias se imobiliza e chega até mesmo a levantar o arco, mas então desiste. O que ele quer é conseguir algo mais poshini – mais saboroso.
Seguimos em frente por mais uma hora. Por fim, um sorriso ilumina o
rosto de Thalia. Osheto, murmura ela. Lá estão eles: os macacos-aranha.
Os primatas movem-se depressa pelas copas densas, 20 a 30 metros acima
de nós. Tem início a perseguição. Tropeço nas raízes, escorrego na lama e
avanço sobre espinhos, atenta ao risco das serpentes. Elias e os seus
parentes se revelam bem mais ágeis, mas a selva é difícil até mesmo para
eles. Capturar um animal que corre pelo solo – como um caititu gordo –
já é um feito e tanto. Já para derrubar um macaco-aranha, um caçador tem
de acompanhá-lo na corrida e disparar uma flecha contra o alvo móvel e
errante.
A fim de aumentar a possibilidade de acerto, ele lança mão de vários
remédios naturais. Cerca de um dia antes da caçada, muitas vezes toma ayahuasca.
A poderosa bebida alucinógena o faz vomitar e entrar em contato com os
espíritos que controlam a presa. Para apurar a mira, às vezes derrama
sobre os olhos o sumo de uma planta. E, durante a caçada, vai mastigando
ervas ciperáceas, ou piri-piri, que contêm um fungo psicoativo que
reforça a concentração mental.
Mas nada disso assegura o êxito na caçada. Vamos obedecendo aos sinais
de Thalia enquanto as formas escuras e de membros compridos correm lá no
alto. Elias alcança uma fêmea, mira e dispara uma flecha. Erro. O
macaco foge. Não sobra tempo para outra tentativa. Se tivesse usado uma
espingarda, o macaco não teria escapado.
Não há armas de fogo nem estradas, tampouco atividades de compra e
venda: embora existam moradores humanos na área do Manu, a impressão é
de que são muito raros e esparsos. O caminho mais comum para se chegar
ao parque pressupõe uma viagem por terra de dez horas, descendo pelas
encostas andinas em uma estradinha apavorante, e depois mais cinco horas
em canoa motorizada pelo Alto Madre de Dios, até o ponto em que ele se
encontra com o Rio Manu. A entrada principal do parque fica ali perto,
mas, para visitar o vilarejo de Elias ou outros – o que só pode ser
feito com permissão das autoridades –, Glenn Shepard e eu tivemos de
viajar de voadeira ainda por vários dias, seguindo pelo Manu e seus
afluentes. O acesso difícil protegeu o parque dos madeireiros e
garimpeiros, assim como dos turistas.
Biodiversidade do Parque Nacional do Manu
Com área de 17 163 quilômetros quadrados, o parque estende-se por toda a
bacia do Rio Manu, desde os campos a quase 4 mil metros de altitude, na
vertente oriental dos Andes, passando por florestas de altitude, até a
mata úmida de planície, na região mais ocidental da Bacia Amazônica. A
região é palmilhada por antas,
sobrevoada por bandos de araras e trilhada por serpentes. Noventa e
duas espécies de morcego cruzam o céu noturno; 14 espécies de primata
pendem dos ramos das árvores, visados por gaviões-reais. Há borboletas por todos os lados, de todos os tamanhos e cores. Sobre todas as superfícies transitam formigas. À noite, a folhagem reluz à luz das lanternas e mais parece coberta de um pó mágico – são os olhos cintilantes dos insetos.
Há milhares de espécies de árvore de todos os tamanhos. Entre as mais
importantes em termos ecológicos estão as figueiras. Uma vez que dão
frutos o ano todo, são elas que asseguram a sobrevivência de muitos animais da Amazônia
durante a estação seca. “Já vi até uma centena de macacos aboletada em
uma única árvore”, conta o ecologista John Terborgh, da Universidade
Duke. “Em noites de luar, quando sentem fome, eles acordam às 2 da
madrugada e ficam lá até as 4.” Logo após a criação do parque, em 1973,
Terborgh e outros cientistas assumiram a direção da Estação Biológica de
Cocha Cashu, que ocupa uma área de menos de 1% do parque. “O Manu é um
dos poucos lugares nos trópicos em que se pode ter contato e estudar a
biodiversidade em toda a sua plenitude”, comenta o ecologista Kent
Redford.
Povos indígenas
Apesar de tanta biodiversidade, a região do Manu não é paraíso
intocado. Pelo contrário, há muita história ali. Várias tribos, falando
línguas distintas, viveram às margens do Rio Manu, e tão povoadas eram
elas que um desses grupos indígenas o chamava de “rio das casas”. Os
invasores incas e, depois, espanhóis, detidos pela mata impenetrável e
por hábeis guerreiros, fracassaram na tentativa de conquistar as tribos
ali estabelecidas. No entanto, as trocas com os incas permitiram a elas
manter algum contato com a região mais ampla. E as doenças trazidas
pelos espanhóis, que provocaram mortes incontáveis, estabeleceram
vínculos entre a área e o restante do planeta.
Na década de 1890, esse mundo remoto passou por outra reviravolta. A
produção de borracha disseminava-se em ritmo frenético. Magnatas da
borracha recrutavam os nativos amazônicos, tanto como seringueiros como
para atacar outras tribos, e, com isso, arrebanhar mão de obra forçada.
Um dos mais ambiciosos desses magnatas, Carlos Fermin Fitzcarrald,
reuniu mais de mil pessoas, quase todas membros da tribo Piro, para
carregar um barco fluvial desmontado, peça por peça, através do istmo
entre o Rio Manu e o Alto Mishahua. A chegada dele abriu a Bacia do Manu
aos seringueiros. Usando os piros como soldados, Fitzcarrald tentou
sujeitar as tribos das margens do Manu. Centenas morreram – conta-se que
as águas do rio ficaram rubras. Outra tribo, a Toyeri, foi quase toda
dizimada. Alguns mashco-piros morreram, e outros embrenharam-se floresta
adentro.
Após o colapso do surto da borracha, a maior parte dos piros – hoje
muitas vezes conhecidos como yines, por causa da língua que falam – se
mudou para um trecho rio abaixo no Manu, depois se reunindo em
assentamentos, como Boca Manu e Diamante, no Alto Madre de Dios. A área
que deixaram para trás foi ocupada pelos matsigenkas. Estes vieram do
oeste e do sul, primeiro com destino às nascentes remotas e, em seguida,
às margens do Manu, depois que ali surgiram escolas abertas por
missionários, nos anos 1960. Hoje, em comunidades como as de Tayakome e
Yomibato, os matsigenkas dispõem de escolas, postos de saúde e telefones
comunitários por satélite. A organização Rainforest Flow instalou
sistemas de tratamento de água e esgoto em quase todas as casas. Nesses
assentamentos esparsos, os moradores caçam e cultivam os seus alimentos.
Mas também ouvem música peruana em seus tocadores portáteis e usam
réplicas de sandálias Croc, juntamente com as roupas tradicionais. Os
matsigenkas que vivem mais perto da nascente do rio ainda se vestem com
panos tecidos a mão, e vivem sem dinheiro e sem ferramentas de metal.
Pouco a pouco, contudo, eles se aproximam dos vilarejos ribeirinhos para
onde vão em busca de machados e assistência médica.
Os mashco-piros estão ainda mais isolados. Eles se mantêm afastados de
tudo, subsistindo da caça e da coleta nas profundezas da mata. Mas é
provável que tenham ficado atentos ao mundo externo: nos últimos cinco
anos, membros de um grupo começaram a aparecer nas praias fluviais do
Alto Madre de Dios, pouco além da divisa do parque, fazendo sinais para
os barcos e solicitando comida. Talvez tenham sido deslocados por
empresas mineradoras, de gás natural ou madeireiras – ou mesmo por um
declínio recente na população dos caititus, uma das principais fontes de
nutrientes para esses indígenas.
Os contatos já tiveram consequências trágicas. Em 2011, um grupo de
mashco-piros matou o matsigenka Nicolas Flores, conhecido como “Shaco”,
que, durante anos, os havia presenteado com ferramentas e comida. E, em
2015, eles mataram outro jovem no povoado de Shipetiari.
Romel Ponciano é um dentre vários yines originários de assentamentos,
como Diamante, que participam do esforço do Ministério da Cultura
peruano para estabelecer relações com o grupo isolado. Ele e outros
compõem a guarnição de um posto no Alto Madre de Dios, na margem oposta
do ponto em que costumava aparecer os mashco-piros. O posto ribeirinho
foi batizado de Nomole, “Irmãos”, na língua yine. Mesmo assim, os
primeiros contatos foram tensos. Eles lhe pediram que disparasse uma
flecha e se despisse. Examinaram-lhe os olhos e a boca, farejaram o seu
sovaco, apalparam os testículos – tudo para comprovar se era mesmo um
irmão. Desde então, os contatos tornaram-se mais amistosos – Romel
ganhou o apelido de Yotlu, ou “A Pequena Lontra do Rio” – mas o fato é
que nunca abaixa a guarda. “Talvez daqui a cinco ou dez anos possam agir
como a gente”, diz. “Ainda vão continuar a usar arco e flecha, mas só
para caçar, e não para matar. Eles matam porque têm medo.”
Segundo médicos que examinaram os índios, o isolamento fez com que eles
se mantivessem mais saudáveis que os indígenas de assentamentos. Mas o
isolamento dos mashco-piros também significa que contam com pouca ou
nenhuma imunidade contra doenças de origem viral, como sarampo, que
poderiam ser devastadoras.
Navegando a caminho de Nomole, de repente vislumbro figuras em
movimento na margem mais distante. Haviam iniciado uma fogueira. Para a
segurança tanto deles como nossa, nem sequer tentamos estabelecer
contato. Debaixo do imenso céu, tendo ao redor a mata aparentemente sem
fim, é fácil imaginar que estamos diante de populações intocadas pela
civilização, vivendo em uma espécie de beatitude primordial. Porém, a
situação deles é mais parecida com a de refugiados de um genocídio.
Traumatizados até a quinta ou a sexta geração pelo surto da borracha,
sobrevivendo como caçadores-coletores enquanto os seus antepassados
haviam cultivado a terra, não há como dizer que sejam não contatados.
Pelo contrário, foram muito contatados, até em demasia, na década de
1890.
Ao devastador surto da borracha se seguiram outros espasmos de
exploração de recursos naturais. Madeira, ouro, gás natural – todos
arrancados da floresta pela mão de obra barata dos habitantes locais. A
região do Manu continua a se destacar como exceção nessa paisagem de
extrativismo desenfreado. Pouco adiante da divisa noroeste do parque,
gasodutos dão vazão às abundantes reservas de Camisea, das quais são
extraídos até 34 milhões de metros cúbicos de gás por dia, e que
contribuem de modo significativo para a economia do Peru. Projetos de
exploração mais recentes, a sudeste, poderiam levar as autoridades
peruanas à instalação de gasodutos através do parque, para conectá-los
ao sistema de Camisea.
Há um consenso entre os estudiosos de que a mera inacessibilidade do
parque funciona como a sua melhor proteção. No entanto, a “mineração de
ouro e a exploração de petróleo avançam sobre áreas circundantes. Parte
dessa atividade deletéria pode afetar o parque”, diz Ron Swaisgood,
diretor científico da estação de Cocha Cashu.
A construção de uma estrada iria acelerar bastante os danos, e o
governador da região de Madre de Dios, Luis Otsuka, defende a abertura
de uma via que se estenderia para mais além do Alto Madre de Dios até
Boca Manu. O povoado de Diamante fica na rota projetada dessa estrada.
Os moradores aguardam a via com ansiedade.
Quando chegamos ao vilarejo, vindos do parque, casas pintadas em cores
vivas se agrupam à beira do rio. Crianças, porcos e galinhas perambulam
pelo local. Achamos uma venda aberta e tomamos uma cerveja, nossa
primeira bebida fria em semanas. No final da tarde, os homens começam a
voltar ao assentamento, sempre carregando um facão, as costas reluzentes
de suor. Entre eles está o líder do povoado, Edgar Morales. Ele conta
que os homens estavam abrindo uma picada para os topógrafos do governo, a
fim de que possam coletar os dados necessários para se conseguir a
aprovação da estrada.
Os habitantes de Diamante, explica Morales, são grandes produtores de
banana, que levam de barco para ser vendida em Boca Manu. Mas eles sabem
que teriam preços melhores em Cusco. De maneira geral, sentem que estão
sendo explorados. “Nossos filhos que saem para trabalhar com madeira
ganham uma miséria”, diz Morales. “Temos muita várzea boa por aqui, com
terra preta. Podemos plantar banana, papaia, abacaxi, iúca – e vender
tudo isso em Cusco. Logo o pessoal daqui vai ter carro. Já disseram que
vai aparecer uma gente ruim e tomar a nossa terra, mas há 800 pessoas
aqui. A gente sabe se defender.”
O Ministério do Ambiente peruano, que administra o parque, opõe-se à
abertura da estrada, assim como a maioria dos indígenas que vivem na
região, conta John Florez, diretor do parque. “Só os colonos são a
favor”, diz ele. “A única comunidade que pede pela estrada é Diamante.”
Em Tayakome, Mauro Metaki, um simpático professor primário formado
pelos missionários, também é contra a estrada, e está frustrado com o
fato de membros da comunidade serem favoráveis. “O governador regional
mente”, diz. “Ele está deixando todo mundo excitado ao dizer que vão
ganhar com a estrada. Mas quem vai lucrar mesmo é ele e os seus amigos
brancos, que vão levar a madeira, os animais e o ouro.”
A
ariranha pode medir 1,8 metro e consumir 3,5 quilos de peixe por dia.
Antes comum nos lagos e rios da América do Sul, hoje está ameaçada. No
Manu, porém, a sua população está crescendo, desde que a caça comercial
foi proibida, em 1973 - Foto: Charlie Hamilton James
Durante muitos anos, o ecologista John Terborgh defendeu a ideia de que
seria melhor se os matsigenkas saíssem do parque – voluntariamente,
ressalta ele –, tanto para preservar a fauna silvestre como para a
melhoria da situação econômica deles. “Se eu acho que devem existir
assentamentos permanentes em parques nacionais?”, pergunta
retoricamente. “De forma nenhuma. Nesse sentido, acho que o modelo
americano é o melhor. Você gostaria de ver fazendas e povoados no
Yellowstone?”
Alguns matsigenkas mais novos já começam a partir; um dos motivos está
na limitação do ensino secundário no parque. De acordo com Samuel
Shumarapague Mameria, antigo líder da comunidade de Yomibato, os jovens
não voltam iguais. “Quando estão aqui, pingam ervas nos olhos e tomam o
piri-piri”, conta ele. “Quando descem o rio, comem arroz e cebola e
perdem o jeito para caçar. Ficam com a cabeça cheia de livros e ideias.”
Do mesmo modo, continua, “as jovens que se mudam rio abaixo, ao
retornar, ficam preguiçosas demais para tecer algodão. As suas almas
ficam só pensando em ler e escrever.”
Alguns dos que seguem jamais retornam, arrumando empregos em atividades
madeireiras, entre outras. “Você vê jovens indo embora em busca de
trabalho, deixando para trás mulher e filhos, e formando outras famílias
fora do parque”, comenta o biólogo Rob Williams. Quase todos os
matsigenkas com quem conversei gostariam de que houvesse escolas
adequadas no interior do parque – e de que os jovens pudessem lá ficar.
Na imagem que fazem da região do Manu, os matsigenkas sempre incluem a
si mesmos. Enquanto Terborgh e outros biólogos ocidentais vêm de uma
cultura que traça uma linha entre os seres humanos e a natureza, os
matsigenkas veem a si mesmos como parte da ordem natural. Plantas e
animais contam com espírito e volição, tal como as pessoas, e não estão
separados. Em Yomibato, me contaram a história de um senhor muito afável
que virou onça e passou a matar galinhas e cães. No fim, tiveram de
abater a onça com uma flecha no coração e depois cremá-la para que o seu
espírito não retornasse.
Guardiões da floresta
Os matsigenkas e outros povos indígenas que vivem no parque não são
apenas caçadores: na prática, atuam como guardas armados. Se todos
aqueles que habitam o parque saíssem em busca de formação escolar e
trabalho assalariado, argumenta Shepard, outros grupos ocupariam o lugar
– e provavelmente estariam menos dispostos a respeitar as normas
relativas ao uso de armas de fogo e ao aproveitamento comercial dos
recursos naturais. “Não existem vazios demográficos na Amazônia”,
conclui o antropólogo.
Como as suas casas se distribuem pelas margens dos principais rios, os
índios são os primeiros a notar acampamentos ilegais. Assim como fazem
os mashco-piros, os matsigenkas, com suas flechas letais, podem até
mesmo impedir tais grupos. No Brasil, os caiapós costumam expulsar
madeireiros e garimpeiros clandestinos.
Enquanto os matsigenkas não usarem armas de fogo, afirma Glenn Shepard,
a caça não provocará danos significativos. Ele e outros antropólogos
solicitaram a dezenas de índios que registrassem o volume de caça: os
animais que abatiam, os que conseguiam escapar e que distância
percorriam para encontrá-los. E constataram que eles abatem cinco
espécies em quantidade suficiente para reduzir as suas populações –
macacos-aranha e macacos-barrigudos, queixadas, e duas aves, o
mutum-cavalo e o jacu-de-spix.
Mas eles também descobriram que, mesmo que a população dos matsigenkas
aumentasse muito nos próximos 50 anos, não chegaria a 10% a área do
parque em que haveria esgotamento dos macacos-aranha – mas sempre
contando que os caçadores não recorram a armas de fogo. Com a ajuda de
espingardas, poderiam logo acabar com os macacos existentes ao redor dos
povoados. Se até agora os matsigenkas respeitaram a proibição de armas
de fogo, talvez isso se deva ao fato de entenderem que elas trariam uma
abundância de carne apenas no curto prazo.
Cinco horas depois de termos saído para caçar, Elias e os seus parentes
continuam a esquadrinhar a copa das árvores. Caminhando no alto de uma
serra, topamos com um objeto enigmático e pútrido – uma maçaroca de
folhas empapadas de um líquido espesso e coberto de moscas. Martin, o
genro de Elias, explica que as onças-pintadas ingerem as folhas e depois
as regurgitam, para se purgarem, “como nós, a fim de se tornarem
melhores caçadoras”. Ali perto, Elias aponta para a mancha ainda úmida
de urina de onça. “Esse mijo é de agora”, diz.
Então, de repente, a mata explode com gritos lancinantes. Um bando
invisível de macacos-barrigudos está avisando sobre a presença da onça.
Fico imóvel e sinto a adrenalina tomar conta de mim. Elias não se abala,
acomoda-se sobre um tronco e enfia a mão na bolsa trançada. Tira folhas
de piri-piri e começa a mastigá-las.
Ele desaparece na mata. Seu objetivo é abater um macaco-barrigudo – e,
se possível, a onça. Os felinos não apenas disputam com os matsigenkas
os macacos mas também matam as suas crianças. Ficamos à espera, e aí
voltamos com cuidado para a trilha. Pouco depois, começa a chover. A
água despenca do céu com força, como se estivesse sob pressão, e nos
afastamos correndo dos cumes expostos, buscando abrigo sob as árvores.
Minutos depois, Elias retorna, sorridente e de mãos vazias, empapado
pela tempestade.
De volta à casa, não tem nada de carne para oferecer à mulher. Um
filhote de macaco-aranha está se aquecendo junto ao fogo. Os matsigenkas
adoram domesticar os animais da floresta – geralmente um órfão filho de
uma fêmea que foi caçada por eles. O macaco bebê está ensopado, tal
como nós. Ficamos ao lado dele perto do fogo. A fumaça sobe acima dos
mamoeiros, acima de Yomibato, dispersando-se sobre a floresta.
Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL ONLINE
| Por: Emma Marris
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