Até onde um hábito nocivo deve ser preservado como patrimônio cultural?
Arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus) em cativeiro
Uma cena comum no Brasil , e considerada até bonita por muitos, é a da
casinha com gaiolas de passarinhos penduradas para fora. Para muitos,
essa cena mostra o amor do dono da casa pela natureza e pelos animais. E
na maioria das vezes, o amor é real e a pessoa nem imagina as
consequências que estão por trás do simples fato de comprar um
passarinho em uma feira-livre. No entanto, devido ao imenso volume do comércio ilegal de animais silvestres brasileiros, esse hábito aparentemente inocente acaba sendo responsável por sustentar uma das maiores ameaças à biodiversidade brasileira.
Atualmente, a retirada de espécies selvagens da natureza para suprir o mercado de bichos de estimação é a modalidade de comércio ilegal que mais incentiva o tráfico de animais silvestres no Brasil.
Vale lembrar que espécies da fauna silvestre são diferentes das
espécies domesticadas pelo homem há milhares de anos. Para que uma
espécie passe a ser considerada doméstica (e não amansada ou domada) é
necessário que ocorra seleção de certas características, com
diferenciação genética e fenotípica, a ponto de se tornar uma espécie
distinta da parental, como ocorreu com gatos, cachorros, bois, porcos,
etc.
A retirada de animais silvestres da natureza, não apenas gera
sofrimento animal, mas pode ter consequências ambientais graves, com
ameaça de extinções locais ou extinção da espécie como um todo, até desequilíbrios ecológicos com consequências econômicas.
Os animais mais procurados pelo comércio ilegal para animais de estimação no Brasil são as aves canoras, papagaios, araras, répteis como iguanas e cobras, e pequenos mamíferos,
como saguis e macacos-prego. No entanto, as aves são de longe os
maiores alvos do comércio ilegal não só pela enorme demanda – é um traço
cultural do brasileiro querer possuir aves de gaiola em casa – mas
também por sua riqueza e relativa facilidade de captura.
Apesar de ser uma atividade tão relevante, estimativas confiáveis
acerca do volume do tráfico de animais no Brasil ainda são escassas. A
principal e mais citada fonte de informação publicada ainda é o 1º
Relatório Nacional sobre o Tráfico de Animais Silvestres, lançado em
2002, pela Rede de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres – RENCTAS.
Neste relatório, os autores estimaram que todos os tipos de exploração
ilegal de animais silvestres seriam responsáveis pela retirada de 38
milhões de animais da natureza brasileira, número que não inclui peixes
ou insetos.
Traficantes colocam os filhotes de arara-azul em caixas
superlotadas. Segundo o 1º Relatório Nacional Sobre o Tráfico da Fauna
Silvestre, elaborado pela Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico
de Animais), de cada 10 animais capturados pelo tráfico 9 acabam
morrendo - Foto: Neiva Guedes
Ainda não existe uma estimativa única oficial, mas diversos números de
levantamentos de diferentes instituições governamentais, como, por
exemplo, o IBAMA e a Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo,
permitem extrapolações que assustam pelo enorme volume de animais
ilegalmente retirados, transportados, comercializados e possuídos:
segundo um levantamento realizado pelo IBAMA, em 2002, os Núcleos de
Fauna e os Centros de Triagem de Animais Silvestres receberam um total
de 44.355 espécimes provenientes de apreensões, sendo que destes, 82,71%
eram aves, 13,75% répteis e 3,54% mamíferos. Já de acordo com um
levantamento realizado pela Polícia Militar Ambiental (PMA) do Estado de
São Paulo com dados referentes ao ano de 2006, apenas naquele ano e
somente no Estado de São Paulo, foram apreendidos pela PMA
(excetuando-se então apreensões realizadas pelas polícias Civil,
Federal, Rodoviária) 30.216 animais, sendo que destes 26.313 eram aves.
Por fim, em uma tentativa de utilizar metodologia científica para
quantificar a atividade de venda ilegal de aves em Recife, dois
pesquisadores de Pernambuco analisaram oito feiras-livres na região
metropolitana e chegaram à conclusão que apenas as feiras analisadas
podem ser responsáveis pelo comércio ilegal de 50 mil aves silvestres
por ano, movimentando quase 630.000,00 dólares. Obviamente esses valores
variam de forma marcada de local para local, mas basta lembrar que o
Brasil tem mais de cinco mil municípios que em sua maioria possuem no
mínimo uma “feira-de-rolo” (feira-livre onde também são comercializados
animais e mercadorias ilegais) para começar a se ter uma ideia da
importância desta atividade ilegal, tanto em termos econômicos quanto
ecológicos.
Os principais defensores da manutenção de animais silvestres como
animais de estimação alegam que este é um traço cultural do brasileiro
e, como tanto, deveria ser preservado. Contudo, a meu ver, culturas são
dinâmicas e devem evoluir. Obviamente patrimônio cultural valioso como
música, dança, histórias, tradições, receitas, ente outros devem ser
mantidos. No entanto, costumes claramente nocivos podem e precisam
mudar. Ou alguém argumenta que (guardadas as devidas proporções)
escravidão, mulheres que não trabalhavam e não tinham direito a voto,
ausência de controle de natalidade, palmadas em crianças, racismo e
homofobia deveriam ser mantidos como patrimônio cultural porque um dia
fizeram parte dos costumes aceitos em nossa sociedade?
Há uma corrente que propõe que animais silvestres sejam reproduzidos em
cativeiro com fins comerciais, o que, de acordo com os defensores desta
ideia, não apenas supriria a demanda por animais silvestres de
estimação, como criaria uma indústria poderosa, que, entre outros
benefícios, criaria empregos, geraria impostos e movimentarias
indústrias relacionadas. O argumento é válido, mas é assunto para ser
discutido em um próximo texto.
Por agora é importante ressaltar que enquanto discutimos o assunto calmamente, milhares de animais sofrem maus-tratos e nossa biodiversidade está sendo erodida severamente e sem retorno.
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