Narrativas
que inspiraram barco mais famoso da história retratam-no com formato
redondo. É o que mostra um texto recém-decifrado de 1.700 a.C., e que
foi escrito mais de mil anos antes do Velho Testamento.
Por
Reinaldo José Lopes
De livrinhos infantis a superproduções com Russell Crowe, todo mundo
já se acostumou com a imagem da Arca de Noé como uma espécie de
transatlântico de baixa tecnologia, com seu casco bojudo e aquela
casinha triangular no alto. É realmente chato bagunçar memórias de
infância, mas o mais provável é que a arca "original" tenha sido...
redonda. E com diâmetro bem maior que a altura. Praticamente uma bolacha
recheada gigante. Veja:
Essa é a tese de um dos maiores especialistas do mundo em caracteres
cuneiformes, principal forma de escrita da antiga Mesopotâmia. O nome do
homem é Irving Finkel, do Departamento do Oriente Médio do Museu
Britânico, em Londres. Veja bem, Finkel não está afirmando que achou um
relato histórico contemporâneo da inundação que teria destruído a vida
na Terra (temporariamente). Até onde sabemos, nada do tipo aconteceu
historicamente, embora algumas catástrofes bem mais modestas possam ter
inspirado a narrativa. Na verdade, as tabuletas de argila estudadas pelo
pesquisador são mais uma prova importante do fenômeno que a gente já
encontrou na primeira reportagem desta revista: os autores da Bíblia
usaram temas e histórias que circulavam há séculos pelas culturas do
Oriente Médio como base de suas narrativas. Mas deram uma interpretação
renovada a esse caldo de cultura, introduzindo uma série de ideias
diferentes, ligadas à crença num Deus único. Em resumo, a narrativa da
Arca de Noé, tal como a da criação, é teologia, e não história.
Esses humanos são uns chatos
Para entender melhor isso, vamos fazer um pequeno flashback. Você
deve estar lembrado de que, segundo o Gênesis, o primeiro casal de
humanos foi criado "à imagem e semelhança" de Deus, com o direito de
governar sobre todos os outros seres vivos e com inteligência e
autonomia moral semelhantes às do Criador. Mas eles desobedecem à ordem
de não comer do fruto proibido do Éden e, por isso, são expulsos do
Paraíso.
Começam a ter filhos-o mais velho, Caim, mata o segundo, Abel,
aliás-e a humanidade se multiplica pelo planeta. Só que o "jeito Caim de
ser" parece que acaba predominando, e Deus fica tão desgostoso com os
descendentes dele, extremamente violentos e sanguinários, que decide
varrer a humanidade do mapa-com exceção do único homem "íntegro entre
seus contemporâneos", nosso amigo Noé.
A ideia de que os seres humanos estavam proliferando sobre a Terra
também é um ponto importantíssimo das histórias sobre o Dilúvio
anteriores à narrativa bíblica. Só que, nos textos mesopotâmicos, como
a Epopeia de Gilgamesh ou o Épico de Atrahasis, o problema não era a
sanguinolência humana, mas sim... o barulho causado por tanta gente. É
sério: segundo essa visão, o Dilúvio teria sido apenas uma forma
extremamente draconiana de aplicar a Lei do Silêncio. No Épico de
Atrahasis, por exemplo, o deus Enlil diz aos seus companheiros divinos:
"O barulho da raça humana se tornou intenso demais para mim/Com a
balbúrdia deles sou privado do sono".
Esse texto é justamente o estudado por Finkel-já se conheciam várias
versões dele, mas as novas tabuletas de argila analisadas pelo britânico
trazem dados mais precisos sobre a construção da arca. "A ideia do
barulho no Épico de Atrahasis provavelmente reflete a superpopulação
que, segundo a imaginação do autor, teria surgido antes que os deuses
impusessem a mortalidade ao homem", explica. "É uma decisão racional por
parte dos deuses, digamos, e não uma decisão moral."
Essa é a principal diferença entre a concepção bíblica e a visão
mesopotâmica do Dilúvio. "A preocupação característica dos pensadores
judeus que escreveram o Antigo Testamento é com a moralidade. Não que a
compreensão das diferenças entre o bom e o mau comportamento não
existisse na antiga Mesopotâmia, mas eles não faziam tanto barulho em
relação a isso quanto as religiões que surgiram depois", conta Finkel.
Na narrativa de Atrahasis, os deuses seguem o conselho de Enlil-menos
um deles, Enki, que decide dar uma mãozinha para o herói-título da
história, cujo nome quer dizer "extremamente sábio". Falando através de
um muro de juncos (para não dar na cara que ele estava dedurando o plano
dos demais deuses), Enki instrui o humano Atrahasis a construir a arca,
dando a entender que ela deveria ser redonda.
As medidas exatas, segundo o texto, seriam 67,7 metros de diâmetro
por 6 m de altura. A matéria-prima: madeira e cordas feitas de fibra de
palmeira, recobertas com betume (que é basicamente petróleo que aflora
naturalmente no Iraque). Você deve estar pensando que esse treco não ia
ser capaz de navegar nem aqui nem na China. De fato, mas a ideia é que
ele só precisaria flutuar nas águas revoltas do Dilúvio, então a
navegabilidade não seria um grande problema.
A sequência dos eventos daí para a frente é quase idêntica nos textos
da Mesopotâmia e na Bíblia: os animais subindo a rampa da arca de dois
em dois, a entrada de Atrahasis e sua família na embarcação e, conforme
as águas baixam, tem até a ideia de mandar aves por uma abertura no teto
da arca para ver se achavam terra firme.
Na hora de descer da arca, no entanto, há mais uma diferença
importante: na história mesopotâmica, os próprios deuses ficam morrendo
de medo da chuvona que causaram, e com fome porque não havia mais
humanos para fazer sacrifícios de animais para eles. Por isso, ficam um
bocado aliviados quando Atrahasis sai do barco e faz esse favor para
eles. No texto bíblico, após o sacrifício, Deus, de forma magnânima,
"inventa" o arco-íris como sinal de que não mais destruiria o mundo com
água.
Memórias genuínas?
Apesar de tanta motivação teológica por trás do texto, Finkel diz que
deve haver algum fato real remotamente refletido por ele. "A história
do Dilúvio, na minha visão, é extremamente antiga e deriva de um dilúvio
real que aconteceu muito tempo antes da invenção da escrita."
Uma possibilidade é que seja simplesmente uma memória muito distante
de alguma grande enchente causada pelos super-rios da Mesopotâmia, o
Tigre e o Eufrates, ou então da formação do Mar Negro, a Leste do
Mediterrâneo.
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