Dados do Disque 100, de janeiro a setembro, apontam que em 2015, houve uma queixa e, em 2016, já são nove

Ofensas, invasão e incêndio em terreiros de umbanda, isolamento social,
constrangimentos, agressão a imagens de santos católicos, profissionais
e agentes públicos despreparados para lidar com religiões e crenças
diferentes são alguns dos casos registrados no Disque 100, da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, relativos ao Ceará. Os números absolutos
não são altos, apenas nove entre janeiro e setembro deste ano, e apenas
um em igual período do ano passado, mas representam um aumento de 800%
em um ano e a confirmação de que a intolerância religiosa é, sim, um
grave problema enfrentado pelos cearenses.
O assunto, tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) –
Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil – foi oportuna
e colocou foco no que eles chamam ‘no mal milenar’ que avança no País. O
preconceito religioso e o racismo, salientam, motivaram e foram pano de
fundo para quase todos os conflitos que ocorreram no século 20 e os que
estão ocorrendo nos tempos atuais.
Sobre os dados do Disque 100, o pesquisador do Laboratório de Estudos
da Violência (LEV) e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC),
Luiz Fábio Silva Paiva, avalia que apesar do pequeno número de
denúncias, é preciso acompanhar a evolução desses casos, estudando com
cuidado o que eles revelam sobre uma sociedade que experimenta uma onda
neoconservadora fundamentada na ideia de ‘minha crença está acima de
todas as outras’.
“Em uma república democrática devemos imaginar que as diversas crenças
religiosas merecem o respeito de todos e, portanto, os preconceitos
devem ser evidenciados, discutidos e superados”. Para ele, o acirramento
da crença de uns contra outros nunca teve bons resultados na história
da humanidade e não podemos acreditar que aqui as coisas possam ser
diferentes”.
O especializa diz que é preciso compreender o contexto no qual se
estabelecem relações preconceituosas que também são relações de força e
segregação social. “Assim, o caso do preconceito religioso evidencia
como olhamos para as crenças das pessoas e nos relacionamos com elas”.
Bullying
João (nome fictício) sabe bem o que é sentir na pele a discriminação
pelo fato de ele ser adepto do Candomblé. “No bairro onde moro, já sofri
bullying, quando mais jovem fui alvo de piadas, de ameaças, mas não me
deixei abater e hoje não me importo com isso, pois sei que é crime e
creio que a sociedade já está se tocando disso”, comenta.
O professor Luiz Fábio tem pesquisa sobre o assunto realizada,
principalmente, na periferia de Fortaleza. Segundo ele, esse tipo de
comportamento agressivo de muitos motiva que os praticantes da Umbanda e
Candomblé não se sintam seguros e silenciem sobre as suas crenças.
“Existe o medo da violência ou de serem excluídos de suas redes da
relação familiar e de amizade”.
Para ele, o perigo do aumento do preconceito é a gradativa
intensificação da intolerância contra quem é classificado como
‘diferente’. “Como vivemos um momento de ascensão neopentecostal, no
Brasil, associado a divergências oriundas de uma profunda transformação
das forças políticas em ação, é possível que isso afete ainda mais as
distâncias relacionais entre quem professa uma fé cristã tradicional e
os que professam outras crenças religiosas não cristãs ou, pelo menos,
não tradicionais dessa fé”.
Em geral, aponta, o preconceito está associado a formas morais que
estabelecem como “todos devem ser”, excluindo todos aqueles que não são
tão facilmente enquadrados nessa definição. As consequências mais
perversas das formas de sujeição criadas por preconceitos são a
intensificação da violência e a discriminação generalizada de que não
professam a mesma fé do grupo socialmente predominante. “Na medida em
que o fanatismo religioso se enraíza se torna mais difícil o diálogo e a
relação entre pessoas com percepções e visões de mundo diferentes”,
frisa.
Disseminação
Para a antropóloga e professora do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFC, Jânia Perla Diógenes de Aquino, em um país
culturalmente diverso e socialmente desigual como o Brasil, quando o
sistema educacional e os meios de comunicação de massa falham na
educação para o respeito, a diferença e a valorização da diversidade,
vimos a intolerância e o ódio social disseminados. “Temos tido várias
amostras da intolerância na esfera pública no Brasil, não só
intolerância religiosa, mas também a homofobia, o racismo, o preconceito
com nordestinos”. Em seu entendimento, em um cenário de preconceito
disseminado, os atores e coletivos mais vulneráveis são os negros e
pobres. Assim, reafirma, as religiões afro-brasileiras que,
historicamente, têm sido vítima de preconceitos e perseguição, continuam
sendo as mais vitimadas.
A saída para tanta intolerância, defende, é a educação e a punição
pelas vias legais. “A diversidade religiosa, a liberdade de crença e
cultos são asseguradas pela leis, é muito importante que as pessoas e
grupos vítimas de preconceitos, intolerância e perseguição desta
natureza façam denúncias e divulguem por todos os meios possíveis as
perseguições que sofrem”, defende.
As alternativas apontadas pela professora são compartilhadas com a
procuradora do Ministério Público Federal no Ceará (MPF-CE), Nilce Cunha
Rodrigues. “É preciso denunciar, sim, porque esse tipo de atitude é
crime. Temos que respeitar o outro, aquele que pensa diferente da gente,
mesmo os que não creem em nada têm esse direito assegurado”, assevera.
Segundo ela, atualmente, o MPF no Estado não tem processo nesse sentido,
mas isso, avalia, não quer dizer que o ato não exista.
Na tentativa de informar e desconstruir o preconceito, a Coordenadoria
do Políticas de Igualdade Racial, da Prefeitura de Fortaleza, realiza
seminários e desenvolve ações nas escolas públicas. “Todos devem
entender que o Estado brasileiro é laico. Somos uma nação com posição
neutra no campo religioso e não podemos aceitar qualquer tipo de
manifestação preconceituosa”, pontua o titular da Coordenaria, Cristiano
Pereira.
Brasil instituiu dia de combate ao preconceito
Em outubro de 1999, um jornal estampou em sua capa uma foto da ialorixá
Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, em publicação com o título
“Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A casa da
Mãe Gilda foi invadida, seu marido foi agredido verbal e fisicamente, e
seu terreiro depredado por integrantes de outro segmento religioso. Mãe
Gilda morreu em 21 de janeiro de 2000, vítima de um infarto. Para
combater atitudes discriminatórias e prestar homenagem a Mãe Gilda, foi
instituído, em 27 de dezembro de 2007, pela Lei 11.635, o Dia Nacional
de Combate à Intolerância Religiosa.
A Constituição do Brasil, em seu art. 5º, inciso VI, preceitua que é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Portanto, o Estado brasileiro é laico e tem interface com diversos
direitos humanos fundamentais, como a liberdade de expressão, a
liberdade de crença e de não crença, a igualdade de gênero e os direitos
das lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros
(LGBT).
Por
Lêda Gonçalves - Repórter
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