Atenção e carinho estão para a alegria da alma, como o ar que respiramos está para a saúde do corpo.
Nestas últimas décadas surgiu uma geração de pais sem filhos presentes,
por força de uma cultura de independência e autonomia levada ao
extremo, que impacta negativamente no modo de vida de toda a família. Muitos
filhos adultos ficam irritados por precisarem acompanhar os pais idosos
ao médico, aos laboratórios. Irritam-se pelo seu andar mais lento e
suas dificuldades de se organizar no tempo, sua incapacidade crescente
de serem ágeis nos gestos e decisões.
A ordem era essa:
em busca de melhores oportunidades, vinham para as cidades os filhos
mais crescidos e não necessariamente os mais fortes, que logo traziam
seus irmãos, que logo traziam seus pais e moravam todos sob um mesmo
teto, até que a vida e o trabalho duro e honesto lhes propiciassem
melhores condições. Este senhor, com olhos sonhadores, rememorava com
saudade os tempos em que cavavam buracos nas terras e ali dormiam,
cheios de sonho que lhes fortalecia os músculos cansados. Não importava
dormir ao relento. Cediam ao cansaço sob a luz das estrelas e das
esperanças.
A
evasão dos mais jovens em busca de recursos de sobrevivência e de
desenvolvimento, sempre ocorreu. Trabalho, estudos, fugas das guerras e
perseguições, a seca e a fome brutal, desde que o mundo é mundo
pressionou os jovens a abandonarem o lar paterno. Também os
jovens fugiram da violência e brutalidade de seus pais ignorantes e de
mau gênio. Nada disso, porém, era vivido como abandono: era rompimento
nos casos mais drásticos. Era separação vivida como intervalo, breve ou
tornado definitivo, caso a vida não lhes concedesse condição futura de
reencontro, de reunião.
Separação e responsabilidade
Assim
como os pais deixavam e, ainda deixam seus filhos em mãos de outros
familiares, ao partirem em busca de melhores condições de vida, de
trabalho e estudos, houve filhos que se separaram de seus pais. Em
geral, porém, isso não é percebido como abandono emocional. Não há
descaso nem esquecimento. Os filhos que partem e partiam, também
assumiam responsabilidades pesadas de ampará-los e aos irmãos mais
jovens. Gratidão e retorno, em forma de cuidados ainda que à distância. Mesmo
quando um filho não está presente na vida de seus pais, sua voz ao
telefone, agora enviada pelas modernas tecnologias e, com ela as imagens
nas telinhas, carrega a melodia do afeto, da saudade e da genuína
preocupação. E os mais velhos nutrem seus corações e curam as
feridas de suas almas, por que se sentem amados e podem abençoá-los. Nos
tempos de hoje, porém, dentro de um espectro social muito amplo e
profundo, os abandonos e as distâncias não ocupam mais do que algumas
quadras ou quilômetros que podem ser vencidos em poucas horas.
Nasceu
uma geração de ‘pais órfãos de filhos’. Pais órfãos que não se negam a
prestar ajuda financeira. Pais mais velhos que sustentam os netos nas
escolas e pagam viagens de estudo fora do país. Pais que cedem
seus créditos consignados para filhos contraírem dívidas em seus
honrados nomes, que lhes antecipam herança. Mas que não têm assento à
vida familiar dos mais jovens, seus próprios filhos e netos, em razão –
talvez, não diretamente de seu desinteresse, nem de sua falta de tempo –
mas da crença de que seus pais se bastam.
Este
estilo de vida, nos dias comuns, que não inclui conversa amena e exclui
a ‘presença a troco de nada, só para ficar junto’, dificulta ou, mesmo,
impede o compartilhar de valores e interesses por parte dos membros de
uma família na atualidade, resulta de uma cultura baseada na afirmação
das individualidades e na política familiar focada nos mais jovens, nos
que tomam decisões ego-centradas e na alta velocidade: tudo muito veloz,
tudo fugaz, tudo incerto e instável.
Vida líquida, como
diz Zygmunt Bauman, sociólogo polonês. Instalou-se e aprofundou-se nos
pais, nem tão velhos assim, o sentimento de abandono. E de desespero. O
universo de relacionamento nas sociedades líquidas assegura a
insegurança permanente e monta uma armadilha em que redes sociais são
suficientes para gerar controle e sentimento de pertença. Não
passam, porém de ilusões que mascaram as distâncias interpessoais que se
acentuam e que esvaziam de afeto, mesmo aquelas que são primordiais:
entre pais e filhos e entre irmãos.
O desespero calado dos pais
desvalidos, órfãos de quem lhes asseguraria conforto emocional e, quiçá
material, não faz parte de uma genuína renúncia da parte destes pais,
que ‘não querem incomodar ninguém’, uma falsa racionalidade – e é para
isso que se prestam as racionalizações – que abala a saúde, a segurança
pessoal, o senso de pertença. É do medo de perder o pouco que seus
filhos lhes concedem em termos de atenção e presença afetuosa. O
primado da ‘falta de tempo’ torna muito difícil viver um dia a dia em
que a pessoa está sujeita ao pânico de não ter com quem contar.
A
irritação por precisar mudar alguns hábitos. Muitos filhos adultos
ficam irritados por precisarem acompanhar os pais idosos ao médico, aos
laboratórios. Irritam-se pelo seu andar mais lento e suas
dificuldades de se organizar no tempo, sua incapacidade crescente de
serem ágeis nos gestos e decisões. Desde os poucos minutos dos
sinais luminosos para se atravessar uma rua, até as grandes filas nos
supermercados, a dificuldade de caminhar por calçadas quebradas e a
hesitação ao digitar uma senha de computador, qualquer coisa que tire o
adulto de seu tempo de trabalho e do seu lazer, ao acompanhar os pais, é
causa de irritação. Inclusive por que o próprio lazer, igualmente, é
executado com horário marcado e em espaço determinado.
Nas
salas de espera veem-se os idosos calados e seus filhos entretidos nos
seus jornais, revistas, tablets e celulares. Vive-se uma vida
velocíssima, em que quase todo o tempo do simples existir deve ser
vertido para tempo útil, entendendo-se tempo útil como aquele que também
é investido nas redes sociais. Enquanto isso, para os mais
velhos o relógio gira mais lento, à medida que percebem, eles próprios,
irem passando pelo tempo. O tempo para estar parado, o tempo da fruição
está limitado. Os adultos correm para diminuir suas ansiosas
marchas em aulas de meditação. Os mais velhos têm tempo sobrante para
escutar os outros, ou para lerem seus livros, a Bíblia, tudo aquilo que
possa requerer reflexão. Ou somente uma leve distração.
Os
idosos leem o de que gostam. Adultos devoram artigos, revistas e
informações sobre o seu trabalho, em suas hiper especializações. Têm que
estar a par de tudo just in time – o que não significa exatamente
saber, posto que existe grande diferença entre saber e tomar
conhecimento. Já, os mais velhos querem mais é se livrar do excesso de
conhecimento e manter suas mentes mais abertas e em repouso. Ou, então,
focadas naquilo que realmente lhes faz bem como pessoa. Restam poucos
interesses em comum a compartilhar. Idosos precisam de tempo
para fazer nada e, simplesmente recordar. Idosos apreciam prosear.
Adultos têm necessidade de dizer e de contar. A prosa poética e
contemplativa ausentou-se do seu dia a dia. Ela não é útil, não produz
resultados palpáveis.
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